Solilóquio
Ouve-se ao longe o rugido da natureza quando prestes a dar à luz. Do céu a terra, rasgam filetes brilhantes a massa quente e aparentemente imóvel de matéria. O som é terrível, mas a distância, grave e suave, conforta os viventes irremediados da iminência de (qualquer coisa).
Acho bonito por parte da natureza que, ao que parece, guarde memórias fora de mim. A memória perdida de pedacinhos de informações roda os cantos do mundo (quem sabe até do universo), pululando sem dono e sem sentido, até encontrar-me novamente - eu existindo sóbrio e desumanizado, ela galopando na calda de um raio.
Fico desconfiado!
Já é quase março, quando as nuvens vão se reunir em outros cantões, e vêm estes átomos de memória, já quase órfãos de sentido, brincar pelas bandas de minha casa. Não desconfio da física, nem da morte; neste caso, é algo que mais se assemelha a uma vontade, em vez do acaso. Como é o nome disso?
Nunca lembro o nome das coisas. Não me detenho nas perninhas das letras, seus radicais, até porque palavra não é de natureza que se finca no chão. Bonito mesmo é o significado: pluridimensional. O que quero dizer é que sei tudo que já senti, apesar de não saber dizê-lo e meu tratado é o seguinte, de que a palavra é finita como o homem, mas minha energia complexa (seria a tal da alma?) sabe tudo, do maior ao menor dos significados.
E o que isso tem a ver com a natureza, com os raios e trovões, com a memória fora de mim?
Não sei! E acho que exagero nos pontos de exclamação. Muito porque traduzem bem meu estado de incerteza sobre o muito.
No entanto, tenho satisfação com o fato de que, muito embora seja assolado pelo mistério, todas pistas por fora e por dentro de mim me fazem escrever. Idiossincrático como pareça ser, é pela palavra, incompleta e insuficiente, que vou polindo minha forma de fazer nascer isto, que o considero tão sem finalidade de existir, existindo, inclusive, até contra vontade, querendo fato e direito a partir de um episódio mundano de um ser humano qualquer elaborando texto e, nem sempre, sentido.