Sons, letras e lugares
É uma imensa sensação de prazer quando nos damos conta da capacidade que uma canção tem de nos teletransportar por diversas veredas, relevos e cidades. A mistura entre sons, silêncios, além de uma combinação rica e fértil de letras com que alguns artistas da música conseguem criar, acaba por servir como um bom convite, ou melhor, como um chamado ao leitor/ouvinte para caminhar, mergulhar ou pairar pelos ares na observação de imagens com as quais, quiçá, nunca antes tenhamos nos deparado.
Lembro-me da primeira vez que fui ao centro de São Paulo, quer dizer, sou paulistano, nascido e criado até a minha adolescência na caótica megalópole do sudeste brasileiro, contudo, foi ouvindo e prestando bem a atenção na música Sampa, de Caetano Veloso, que reparei como a própria cidade se revelava diante dos meus olhos enfim. A força do encontro entre aquelas observações e experiências do artista baiano da tropicália em pleno centro paulistano da década de 70 com a desse filho da terra que mal conhecia sua matriarca até a primeira década do novo milênio foi tamanha que me fez querer voltar num tempo mais maduro ao ponto de intersecção entre a Ipiranga com a avenida São João. Apenas para buscar a cidade num tempo mais que perdido, fruto da imaginação de leitor/ouvinte que havia guardado uma fotografia própria, ancorada nas retinas de um outro, compartilhada nas ondas do som. Aquela S. Paulo evidentemente não encontrei. Mas a conheci, reparei e guardei junto com o espólio de experiências acumuladas das minhas andanças até então.
Teve também a primeira vez que gozei mentalmente me imaginando correndo pelas praias recifenses, em meio à coqueiros dançantes ao embalo da brisa morna do mar tropical e de uma ideia de amor edênico que ficou para trás numa imagem esgarçada soprada pelo tempo de alguma boca que beijei ou de uma pele macia que outrora me enrosquei. Isso tudo acabei vivenciando, sem nunca ter ido à Pernambuco, numa escuta sincera e apaixonada da canção Coqueiros, de Geraldo Azevedo. Claro, nunca beijei uma bela mulher nas areias de alguma praia do Recife, muito menos corremos nus por entre coqueiros paradisíacos, mas confesso que a sensação da canção, de toda paixão, de um desejo de retorno a um tempo de entrega que não volta mais, nunca pôde voltar, porque ele nunca veio.
Foi impossível sair do ônibus e pisar no chão da rodoviária de POA – Porto Alegre – e não lembrar da inesquecível letra de Cleiton e Kledir. Talvez, por ter sido a imagem mais forte até então que tinha da capital do Rio Grande do Sul. Caminhando pelo centro velho e pela orla do Guaíba, conhecendo as casas de poetas, contistas e romancistas gaúchos, tomando uma autêntica cerveja artesanal da região, nada tinha sido como a primeira vez e era isso afinal de contas. Havia deixado o baixo astral, lembrado de pessoas do passado com as quais queria me distanciar, e segui pelos caminhos de uma grande ex província, observando guris e gurias, buscando algo que não conhecia, mas que sabia que de alguma forma poderia encontrar. Apesar do friozinho e da seriedade da gente da terra com todo o seu apego às tradições e aos costumes dos antepassados, posso dizer que estar ali foi uma segunda visita calorosa, um remake de situações vividas fora da vida, fora do tempo, fora de qualquer realidade concreta, que só agora tinha sido contemplada.
Havia um Rio que eu conhecia muito antes de conhecer o Rio, se é que o conheci ainda. Era o Rio do Antônio, quer dizer, do Tom, do Tom Jobim. Mas, também, de Vinícius, de gente que fazia bossa, que fazia troça, de frente para o mar, observando a beleza, de Ipanema, a beleza da vida. Chegar pela BR 116, descendo a serra e desnudando-a pela manhazinha quando suas brumas se dissipam, assim deixando entrever Teresópolis, Petrópolis, tempos irretornáveis de outras polis, é lindo e inegavelmente único. Mas descer na baía fluminense sustentado por asas e guiado por turbinas, quando pela aproximação do Santos Dumont torna-se obrigatório seguir o modelo das curvas dos morros de açúcar, dos braços do Pai, dos mares de sal, planando sobre o mormaço carioca e sobre a serpente ondulante de carro e gente, parece de cinema. Não há como andar pelo Rio de Janeiro sem pensar duas vezes se está mesmo ali, ou se está em páginas, canções, letras de sambas, em meio à versos, ritmos e cenas já ouvidas, viajadas.
E quando fui a Salvador, hein! Nossa! Quando estive pela primeira vez, parecia um menino indo ao estádio ver como era o jogador que já havia ouvido seus gols pelo rádio. Havia algo de primeiro, mas havia algo de segundos, terceiros, vários. Um encontro com o Lacerda, uma passada pela praça do poeta, uma caminhada pelas ladeiras do Pelô, uma água de coco de frente para o Farol famoso. Quase tudo como uma confirmação, uma constatação de imagens construídas pelo batuque do Olodum, ou pelas músicas de Caymmi, sobretudo quando avistei o Rio Vermelho. Caramba! Como deve ser doce morrer naquele mar, foi o que pensei ao passar de ônibus pela orla e verificar que a cor daquele mar era diferente. Um diferente nem tão diferente assim. Pelo menos para mim que já havia construído a minha Salvador, aquela feita de colagens de recortes dos outros, dos artistas, dos letrados, dos músicos.
Mas, claro, não posso me fixar apenas nas letras e imagens de cenários marítimos e de capitais velozes, porque também estive vagueando por campos brancos, repletos de seixos, macambiras, suçaranas, de declives próximos às barrancas do Rio Gavião. Quando estive próximo à Gameleira, olhando de dentro do carro que chacoalhava pelas descidas de ladeiras íngremes para lá das doze léguas ao sul do Pradoso, e bem mais à oeste da Conquista baiana, procurava por um cenário medievo e respirava a atmosfera do catinguêro contemporâneo, quase que fechando os olhos e sussurrando as quadras inesquecíveis do cantador Elomar. A viagem pela poeira da caatinga do sertão da ressaca aconteceu como uma visita a um lugar conhecido antes, pela poesia do menestrel nativo, porém, foi mais pelo reconhecimento da bravura e da simplicidade de um povo grande, mais até do que o visto em cantoria.
Quiçá, remexendo os recortes do tempo ainda mais antigo, lembro que o som que ecoava nos corredores da escola de primeiro grau na zona sul paulistana falava de um cenário bem próximo, daquele ali logo além do muro, para onde iria alguns dos meus colegas após a última aula. Com uma batida agressiva, de ritmos e rimas contadas na velocidade da respiração de jovens sobreviventes, palavras de um cenário de abandono do poder público e de cotidiano violento me apresentavam imagens das favelas da maior cidade da América Latina. Pela voz de Mano Brown e dos Racionais, conheci, antes mesmo de dobrar a esquina e seguir pelos becos estreitos, os barracos do Jardim Ângela, os campinhos do Piraporinha e os trilhos da via férrea do Grajaú. Que era, na música e na realidade, a última estação para muitos dos próximos a mim.
Enfim, também poderia narrar mais lembranças construídas no agora de situações e imagens vistas no ontem de um sem tempo que recolhi ouvindo de canções por essa trajetória de minhas escutas e mergulhos vários. Poderia acrescentar experiências de primeiros encontros, que não eram bem primeiros, com muitos lugares desse nosso Brasil, tanto dos centros, como das margens, dos mares e demais campos mil. Mas, seria apenas um inventário ficcional de lembranças que ficaram marcadas de alguma forma como parte relevante de minha vida. Portanto, a única vontade que me fica é a de querer escutar mais, perceber os lugares ainda não conhecidos e buscar nas leves letras itinerários que instigam a ir vê-los e senti-los com o peso do próprio corpo.
Sigamos viajando, nos sons, nas letras e nos próprios lugares, tanto nos imaginados, como nos que construímos a cada dia!