De Alguém que ainda vive
De Alguém que ainda vive...
O texto que se segue é uma ínfima reflexão sobre a Vida, a minha vida. O considero uma tentativa desabrida, apenas um ensaio sobre tudo e nada, um alinhavo que pretende ser um epítome, ainda que controverso do emblemático ano 2016. Decidi romper o meu silêncio e arrisquei tentar colocar em palavras o inominável, o inexplicável, o indizível! Deixo o meu pedido de perdão e o reconhecimento da minha impotência: não consegui pela linguagem transcrever aquilo que transcende as palavras; talvez fosse melhor ter deixado tudo envolto no silêncio... Confesso que relutei deveras para não escrever esse lacônico escrito, mas o escrevi e gostaria de compartilhar com você que sente que esse ano deixou marcas inapagáveis na sua vida e jamais será esquecido, afinal ele está costurado na sua pele, indelevelmente marcado no seu coração. São as minhas últimas palavras, as palavras de alguém que ainda vive em um tempo que está morrendo. Deixo o convite: leia comigo até o final!
Hoje, 31 de dezembro de 2016. Estou sentado absorto em uma cadeira velha, possuído por sentimentos controversos, que se revezam em seus antagonismos dentro da vida que persiste em não se apagar dentro de mim. As mãos estão trêmulas, os olhos carregam resquícios de noites insones e o peito sente uma dor excruciante querer explodir a qualquer momento tingindo tudo de melancolia. Estou com a barba crescida; alguns fios de cabelos ganharam a cor branca, que alguns dizem ser sinal da sabedoria, vai saber! Estou mais magro, visivelmente mais magro e com o corpo deveras dolorido. O meu pescoço encontra-se travado e com os músculos contraídos, talvez seja o preço da teimosia de não querer se curvar... Mas não é só o corpo que está alquebrado e dolorido, a alma também o está. Olho fixamente para uma folha em branco (virtual, de uma realidade não real. Uma folha em branco é uma metáfora poderosa!), tentando arrancar réstias de inspiração para compor essa reflexão. O que dizer sobre esse tempo e os seus contra-tempos? Inicialmente devo dizer que, para mim, esse não é um ano cronológico, um ano temporal, um ano de calendário. Para mim esse é um tempo dentro do Tempo; é um tempo metafórico, um tempo existencial. Ele foi o tempo do meu rito de passagem, da minha difícil travessia, do meu ingresso no mundo dos adultos. Assim se fazia na antiguidade: ao completar 30 anos, um rito era celebrado para marcar uma mudança significativa na vida de um homem, para fazê-lo ingressar no mundo dos adultos, no mundo marcado pela gravidade e responsabilidade. Eu trintei! Tenho 30 anos completos e o meu rito, minha virada, minha passagem para um outro tempo foi dolorosa. Foi um batismo de sangue, uma cerimonia da Morte, o abandono da minha infância! Talvez você que está lendo esse tresloucado texto ache um absurdo o que eu disse! Mas continue nos caminhos e descaminhos dessa leitura. Nesse agônico ano eu mostro porque eu o considero o meu rito de passagem: nesse ano, digo novamente, eu completei trinta anos de idade. Celebrei 15 anos da minha “conversão” a Cristo (em linguagem teológico-cristã a conversão é uma das experiências mais profundas e de encontro da vida humana). Realizei, em um mundo onde tudo parece estar sobre a força do perecível, 5 anos de casado (infelizmente concordo que nada, ou quase nada nesse mundo irá durar...). Alcancei os 5 anos de formado em Teologia (para os que me conhecem de verdade sabem da minha paixão e devoção a mais bela dos saberes). Seriam apenas coincidências? Não consigo acreditar que sejam! Começo a abrir o meu coração que foi despedaçado pelos golpes do imprevisto.
Fui agraciado no final de 2015 com a notícia da paternidade; eu seria pai de gêmeos idênticos! Não consigo colocar em palavras a emoção e alegria com a boa nova de ser pai de gêmeos. Descobri o que era sonhar acordado, de voar sem asas, de alcançar o céu sem sair da terra... Mas os sonhos foram interrompidos no começo do ano de 2016. No dia 04 de janeiro o infeliz inesperado aconteceu: meus filhos ou filhas morreram! Eu também morri! Eu guardo uma caixinha vermelha com um belo laço de fita vermelho-sangue em meu guarda roupas; dentro dela estão quatro pares de sapatinhos de bebês (dois azuis e dois rosas) e duas roupinhas vermelhas; ali ficou o meu coração! Seu túmulo, sua morada provisória no munda da morte. Eu escrevi um poema por ocasião da desgraça que se abateu sobre mim (Cântico de Duas saudades) e para eternizar o amor que sinto e a saudades dos que não nasceram... Um mês se arrastou e “minha” esposa ainda carregou tristemente os restos da morte dentro de si. No dia 05 de fevereiro demos entrada no hospital para fazermos os procedimentos pós-aborto; precisou ser feito via indução. Um parto sem filhos... Das 20:00 horas do dia 05 (eram os dias de carnaval) as 06:00 do dia 06 de fevereiro eu fui cúmplice e vi uma mulher se contorcer de dor até as lágrimas; se revirar de um lado para o outro agarrando o meu braço, implorando para eu a tirá-la daquele lugar e situação sofrível! A noite foi longa e de gritos de dor. Eu comecei ali a aprender o que significa a impotência humana, a nossa precariedade! Ela caiu exausta às 06:00 h e desmaiou de cansaço. O quarto estava em silêncio, envolto em uma penumbra. Sangue, suor e lágrimas ainda maculavam aquele recinto.
O meu telefone tocou. Eu deixei quarto e fui para o corredor atender a ligação que eu não queria jamais atender: era a irmã da minha melhor amiga, mestra e mãe me avisando sobre o adeus da inesquecível Adenete. Voltei para o quarto despertando minha “mulher” do sono e com uma lágrima muda a deixei saber da morte da Dama da Psicologia (era assim que eu a chamo até hoje). Trabalhamos juntos em uma Casa de Recuperação, e todos os dias eu sento em uma cadeira de metal e almofadas vermelhas que está em uma sala com um quadro de peixes coloridos pendurados na parede lateral; era ali que ela Adenete ficava! Descobrir que dizer adeus dói demais. As despedidas são sempre tristes e deixam imensas saudades. Mas a saudade é o coração através da memória não permitindo que o que é especial seja esquecido, seja abandonado... Eu não sabia que iria sentir outras saudades.
O meu avô materno, Ângelo Luchi (vulgo Vovô Nego) nos fez uma visita no sábado, dia 13 de fevereiro. Veio cortar o cabelo comigo (nunca havia cortado em outro lugar que não fosse sua barbearia predileta) e almoçar conosco. Eu não sabia, daria tudo para saber que era a sua última visita! Eu cortei os cabelos brancos como a mais pura neve com cuidado. Ele tomou banho. Almoçou! Foi embora e nunca mais voltou! Na quarta feira, dia 17, durante a madrugada ele passou mal e nos deixou como ele sempre foi em vida (discreto, sereno e reverente). Doze dias após ter enterrado a minha amiga eu voltava no mesmo lugar, agora para entregar o meu avô a Indesejada das gentes. Li um poema na despedida e fiz uma oração; A segunda mais difícil da minha vida! Os vazios e desgostos foram se acumulando dentro de mim. Mas não era o fim das minhas noites de Getsêmani, das noites escuras e silentes da alma.
Descobri uma verdade dolorosa, fatídica e desconcertante: O Amor para ser grande ele precisa ser trágico! Para ser belo ele precisa da morte! Eros e Thanatos nunca se separaram. Caminham de mãos dadas. Eu sempre acreditei que uma vida sem amor não merece ser vivida. Eu dancei uma valsa sombria com a senhoria de beijos gelados e mãos frias, a Morte! Vi o meu amor ser levado de mim, repentinamente no dia 03 de outubro, como um golpe duro do machado do destino. Os laços se desfizeram; os meus poemas e versos então mudos, mortos. A minha aliança jaz em um lugar escuro e silencioso. Fiz a oração mais difícil da minha vida! Como dizia Vinícius de Moraes em seu Soneto de Fidelidade, tudo foi infinito enquanto durou... Minhas juras, meus beijos estão carregados de vazio. O meu coração está vazio! Eu sinto os meus pés percorrem o vale de sombras e mortes, onde o absurdo e o silêncio se unem e conspiram contra mim. Mas amar é deixar ir quando preciso; é não prender! Hoje luto para que o amor não seja apenas uma palavra e imagem do vazio, um nada; Mas ele é transcendência. Eu estou no intervalo entre a Sexta-feira da crucificação e o Domingo da ressurreição: no Sábado do mortal silêncio; apenas espero as manhãs de ressurgimento! Aquilo que foi amado e vivido ficará eterno na minha carne e memória...
Ela, a Soberana de Impérios sombrios e silêncios terríveis nos pregou mais uma peça no fim desse ano, que é o pior de toda a minha vida: O meu querido tio Zé, no dia 03 de dezembro, após lutar heroicamente contra uma doença terrível, acenou com as mãos nos dizendo adeus! Um homem que nos ensinou o valor da paciência de da resignação! No seu velório eu pude deixar uma última homenagem, lendo um poema e fazendo uma reflexão sobre o valor dos que amamos.
Chego ao fim desse longo texto. Peço perdão por ter me estendido até aqui. Abri o meu coração, desnudei a minha alma. Talvez você esteja a me perguntar “por que?” Talvez não exista uma resposta. A única questão séria da vida, para mim, é se a Vida vale a pena ser vivida. Muitos me perguntaram se eu desejei a morte... Sim, eu a desejei! Mas eu escrevi esse texto por dois motivos: 1º) para fazer uma confissão de esperança! Ele é o meu protesto, minha revolta, minha indignação! Não importa quão duro sejam os seus dias. Não importa se é enormemente escura sua solidão. Quantas vidas você deixou; quantos amores partiram. Alguém que ainda vive diz para você no desfecho desse ano: VALE A PENA VIVER A VIDA! Viva intensamente cada momento! Aprenda a perdoar, a amara, a sorrir, a perder, a sofrer... Aprenda com a vida, essa misteriosa mestra de sabedoria infinda. 2º motivo: para agradecer, acima de todos e tudo, a Deus, o único que sentiu tudo o que eu senti e sabe o que sinto e me entende e nunca me abandonou e aqueles e aquelas que não desistiram de mim (Meus pais, minhas duas irmãs, meus outros entes queridos, meus amigos e amigas, alunos e alunas, mestre e mestras). Confesso que se fosse só por mim eu teria desistido! A solidão pode ser minha, mas descobri que nunca estarei sozinho, ela não é solitária!
Meu grito, minha confissão, minha esperança: O Novo ano não está fora, mas dentro da gente. Recomecemos! Nunca desista!
De Alguém que escolheu viver.