O sol é para todos?

“O tempero do mar foi lágrima de preto

Papo reto como esqueletos de outro dialeto

Só desafeto, vida de inseto, imundo

Indenização? Fama de vagabundo”

(Boa esperança – Emicida)

Antes de abordar esse tema gostaria de me posicionar. Sou mulher cis branca de classe média. Por que me posiciono? Porque seria incompleto falar sobre racismo sem considerar os recortes de classe e gênero que envolvem a população negra. Se você não sabe, saiba que o homem negro rico não sofre o racismo da mesma forma que o homem negro pobre, assim como mulheres brancas não sofrem do machismo do mesmo jeito que mulheres negras sofrem. Esse olhar se chama interseccionalidade de marcadores sociais da diferença. Isso significa que temos características que quando sobrepostas nos tornam mais ou menos vulneráveis a determinados preconceitos.

No premiado livro O sol é para todos da autora Harper Lee, a questão mais marcante da história é o racismo. A história se passa na década de 1930 em uma cidadezinha do Alabama no sul dos EUA, o livro foi lançado na década de 1960 e infelizmente permanece muito atual. A história é contada por uma menina de 6 anos, Scout, ela narra o cotidiano de sua cidade pequena do interior e o fato de seu pai advogado estar defendendo um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. A narrativa de Lee é incrível e não tem como não se afeiçoar por Scout. Mas o que marca é a discussão sobre como o sistema judiciário não é nada justo. Durante o julgamento de Tom Robinson fica evidente não tinha como ele ter agredido e violentado a moça branca uma vez que ele tinha uma deficiência no braço que lhe tirava toda força. Mas Tom já entra no tribunal condenado. Um júri composto só por homens brancos (naquela época mulheres não podiam compor o júri, há também questões de gênero interessantes no livro) e durante o interrogatório das testemunhas fica evidente que o que está sendo julgado ali é a cor da pele de Tom e não o que ele fez ou não.

E porque o livro permanece tal atual? Porque os tribunais brasileiros julgam casos assim todos os dias. Porque como diz a música do rappa “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Há resquícios do período colonial escravocrata em nossa sociedade, o racismo é tão estrutural que por vezes sequer percebemos que ele está acontecendo. Pessoas negras tem menos oportunidade que pessoas brancas, os trabalhos de servidão são ocupados em sua maioria por pessoas negras, eles ainda estão servindo os brancos. Quantos professores negros há em sua Universidade? Quantos alunos negros há na sua universidade?

“Tema da faculdade em que não pode pôr os pés”

(Boa esperança – Emicida)

O Brasil é um país que foi colônia, portanto muito da nossa cultura e valores hegemônicos vem de um olhar do homem branco europeu. Se você é homem e branco, pode nunca ter notado, mas você é privilegiado na nossa sociedade. Os estudos atuais sobre racismo consideram a decolonialidade como linha de pensamento partindo da ideia de que esses valores que foram construídos sob o olhar enviesado no homem branco europeu são preponderantes e têm uma tentativa de quebrar com isso. Contar a história do povo negro e suas demandas e necessidades para além do que aprendemos na escola de que os negros foram escravizados. A história que aprendemos na escola coloca a população negra numa caixa tornando as pessoas negras exóticas em sua cultura e no fato de ter existido escravidão. Por quanto tempo e ainda hoje vemos sociedades africanas e/ou religiões de matrizes africanas que existem no Brasil como algo inferior a civilização. Como se eles ainda não tivessem evoluído por não viverem da mesma maneira que a civilização europeia? Ou seja, puro etnocentrismo.

“Pois na era Cyber, cêis vai ler

Os livro que roubou nosso passado igual Alzheimer”

(Boa esperança – Emicida)

“Sem identidade somos só objetos da história”

(Mandume – Emicida)

Então falar de racismo é falar de pensamento colonial branco europeu, é falar de etnocentrismo, é falar sobre desigualdade social. O racismo existe porque o pensamento construído no Brasil ainda é branco europeu. Ainda somos colônia. Ainda naturalizamos pessoas negras em empregos de serviço como gari, segurança, técnico de enfermagem, faxineira, doméstica. No livro “Quando me descobri negra” de Bianca Santana, ela conta como e quando se entendeu como pessoa negra e com isso veio o entendimento do racismo estrutural que sofria e não percebia. Conta também histórias cotidianas do racismo que as pessoas negras sofrem para entendamos o que é o racismo. Está no cabelo, na pressuposição de cargos que achamos que a pessoa ocupa só pela sua cor de pele, está nas piadas que ainda circulam marcando pessoas negras como bandidos ou espertinhos. A polícia mata jovens negros todos os dias por causa da ideia tão marcada que temos de pessoas negras como criminosas. Já se perguntaram por que são pessoas negras que estão no maior índice de criminalidade? Será que é algo da cor da pele ou é porque desde a Lei Áurea o preconceito não sumiu com a lei, a lei libertou pessoas negras da escravidão, mas não libertou da sociedade branca a ideia de que pessoas negras deveriam servir, que pessoas negras são inferiores. Uma lei não muda uma ideia, a lei deveria conferir igualdade de direitos, mas no tribunal será que ela faz isso?

"O cano do fuzil

Refletiu o lado ruim do Brasil

Nos olhos de quem quer

E quem me viu, único civil

Rodeado de soldados

Como seu eu fosse o culpado

No fundo querendo estar

A margem do seu pesadelo

Estar acima do biótipo suspeito

Nem que seja dentro de um carro importado

Com um salário suspeito

Endossando a impunidade

A procura de respeito

[…]

Era só mais uma dura

Resquício de ditadura

Mostrando a mentalidade

De quem se sente autoridade

Nesse tribunal de rua"

(Tribunal de rua – O Rappa)

Em um trecho de “o sol é para todos” o advogado de Tom Robinson está dando suas últimas palavras de defesa do réu e diz: “Uma vez Thomas Jefferson disse que todos os homens nascem iguais, frase que os ianques e alguns membros do executivo em Washington gostam de nos lembrar. Nesse ano da graça de 1935, certas pessoas tendem a usar essa frase fora do contexto e com qualquer fim. O exemplo mais ridículo que me ocorre agora do mau uso dessa frase é que os responsáveis pela educação pública favorecem os estúpidos e os preguiçosos junto dos esforçados, já que todos são iguais, afirmam um terrível complexo de inferioridade. Sabemos que nem todos os homens são iguais, não no sentido que alguns querem nos impor: algumas pessoas são mais inteligentes do que outras; algumas têm mais oportunidade do que outras, pois nascem privilegiadas; alguns homens ganham mais dinheiro que outros; algumas senhoras fazem bolos mais gostosos do que outras; algumas pessoas são mais dotadas do que a maioria. Mas há algo neste país diante do qual todos os homens são iguais, há uma instituição que torna um pobre igual a um Rockfeller, um idiota igual a um Eisntein e um ignorante igual a um reitor de universidade. Essa instituição senhores, é o Tribunal de Justiça. Pode ser a Suprema Corte dos Estados Unidos, o juizado mais simples do país ou este honrado tribunal ao qual os senhores servem. Como qualquer instituição, os nossos tribunais têm falhas, mas são os maiores niveladores deste país, para os nossos tribunais todos os homens nasceram iguais. Não sou idealista a ponto de acreditar piamente na integridade de nossos tribunais e do sistema judiciário, não se trata de um ideal, mas uma realidade viva, que funciona. Senhores, o tribunal não é melhor do que cada um dos jurados sentados a minha frente”.

Apesar de tudo que o advogado fala, Tom Robinson é condenado culpado. E porque será que isso aconteceu? O ano era 1935 mas será que em 2016 isso ainda não acontece? Ontem o filho da funkeira Tati quebra barraco foi assassinado pela polícia, quantos jovens negros são condenados e mortos sem sequer terem o direito a um julgamento? Será que o sol é mesmo para todos? Para natureza com certeza que sim mas para os valores que construímos em sociedade com certeza não. No episódio 5 da 3° temporada de Black Mirror (contém spoiler) é possível enxergar um exemplo do porque ainda existe racismo e matança em pleno século XXI na nossa sociedade. No episódio os soldados são motivados a matar “baratas”, pessoas que eles entendem como nocivas à nação. Mas na verdade as pessoas ditas “baratas” são pessoas comuns e como os soldados tem um implante em suas mentes eles vêem essas pessoas como zumbis, como se elas tivessem atacando os soldados; eles também não sentem cheiro ou as sensações quando estão em ação matando as pessoas. Quando um dos soldados tem seu implante bloqueado ele passa a ver as pessoas como elas realmente são, pessoas comuns, e as outras pessoas da sociedade que não tem implantes mas também atacam as baratas foram convencidas de que essa “espécie” de ser humano era inferior e por isso mereciam morrer pois ao se reproduzirem propagam suas imperfeições, tendências a doenças e afins como qualquer ser humano. (Desculpe senão ficou muito claro do que se trata o episódio entretanto recomendo que assistam porque é complexo de explicar mesmo).

Meu ponto aqui é que esse episódio que parece algo muito futurista na verdade é algo que fazemos desde que existimos. O nazismo, o racismo nada mais são do que implantes muito bem elaborados que nos ensinaram a odiar as pessoas que eram diferentes de nós, que nos fizeram acreditar que negros, judeus e tantas outras pessoas eram inferiores ao homem branco europeu e por isso mereciam morrer. A homofobia dos Bolsonaros da vida nada mais é do que uma crença que pessoas heterossexuais são superiores a pessoas homossexuais e por isso todas as pessoas com identidade de gênero e sexualidade dissidentes são mortas todos os dias no Brasil. É mais fácil ir para guerra quando vemos só um lado da história, como mostrado no episódio, o que motiva uma guerra a violência é uma crença. Assim judeus foram mortos, negros foram e ainda são mortos todos os dias nos tribunais de rua brasileiros; gays, lésbicas, travestis, trans são mortos e violentados todos os dias porque criamos e espalhamos a crença de que o homem branco europeu é superior. Eu ainda escrevo como forma de lutar para que o sol seja de fato para todos. Nossas diferenças nos fazem crescer e só consigo enxergar ignorância na fala de pessoas que usa o ódio para se sentirem melhor do que os outros.

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar” (Nelson Mandela)

dezembro de 2016

Menina Beijaflor
Enviado por Menina Beijaflor em 12/12/2016
Código do texto: T5851029
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