Você consumiu sua vida?

Ivan Ilitch é um personagem do escritor russo Liev Tolstói no livro "A vida e morte de Ivan Ilitch. Ivan viveu uma vida de planta e quando adoece passa a refletir sobre sua própria existência e o sentido da vida. Você deve estar se perguntando o que é uma vida de planta? No meu jeito de ver, a vida de planta se assemelha aquela que aprendemos na escola quando crianças, quando a professora de ciências falava “a planta nasce, cresce reproduz e morre”.

Ivan é um advogado bem-sucedido que nasce, cresce, constrói sua brilhante carreira, casa, reproduz e depois adoece morrendo aos poucos. Quando se dá conta que sua morte está próxima passa a repensar suas relações e a vida que viveu, levando a questionar inclusive o próprio sentido da vida. Tanto o personagem de Tolstói como o de Yalom em “Quando Nietzsche chorou”, o doutor Brauer, passam por essa crise existencial questionando a própria vida, seu sentido e se valeu a pena tudo que viveram. Um (Ivan) pensa sobre isso pois se dá conta de que está morrendo e o outro (Brauer) porque as colocações da filosofia de Nietzsche fazem ele pensar sobre o assunto. O livro do Tolstói serviu de constatação para uma coisa que eu já pensava há muito tempo e quando Clarice falou “vamos ler esse livro e discutir porque ele me impactou profundamente”, eu li e fiquei feliz de ver que a literatura trazia essas reflexões. Coincidentemente ou não, algumas semanas depois li “Quando Nietzsche chorou” e estava lá as ideias de casando.

No livro de Yalom, o Dr. Brauer está incomodado com a própria vida, com o casamento e com o fato de ter se apaixonado por uma de suas pacientes. Ele diz: “aquele rapaz agora envelhecendo atingiu o ponto da vida em que não consegue mais ver seu sentido. Sua razão de viver (minha razão, minhas metas, as recompensas que me impeliram pela vida) se afigura absurda agora. Quando penso em como busquei besteiras, em como desperdicei a única vida que possuo, um sentimento de terrível desespero me domina.”

Nietzsche faz ele se questionar desde o princípio como ele foi parar ali, ou seja, porque ele escolheu ser médico, porque escolheu se casar. Brauer acha as perguntas meio sem fundamento e diz: “Metas? As metas estão na cultura, no ar. Nós as respiramos. Todos os meninos com quem cresci inalaram as mesmas metas. Todos queríamos pular para fora do gueto judaico, subir na vida, ter sucesso, riqueza, respeitabilidade. Era o que todos queríamos! Nenhum de nós jamais se pôs deliberadamente a escolher metas; elas estavam bem ali, as consequências naturais de meu tempo, meu povo, minha familia”

O pensamento de Brauer é muito interessante pra pensar a vida de planta. Vida de planta nada mais é do que uma condição que nos é colocada enquanto seres humanos e somada a isso a cultura que estamos inseridos, os valores da sociedade que vivemos. A planta não tem escolha, não tem consciência de si, digamos que ela cumpre seu destino de ser planta ao nascer, crescer, reproduzir e morrer. Mas e nós? Teríamos nós condições próprias? Destino? Somos obrigados a viver o que o nosso corpo materializa? Sinceramente não acredito que nosso biológico rege nossa vida como rege a de uma planta. Conquistamos espaços, fizemos descobertas e entendemos o mundo da maneira que entendemos porque não somos plantas. O mundo não é o mesmo com a nossa existência. Então por que insistimos em existir da mesma maneira que as plantas? Por que repetimos padrões? Por que nunca questionamos a nossa cultura? O nosso corpo? Acho que as pessoas que tem um ponto de interrogação quase que como uma parte de si se questiona o que Ivan Ilitch questionou no fim da vida ou Brauer diante de uma crise. Tem pessoas que passam a vida se questionando. Acho que assim como Nietzsche coloca, a nossa vida só vale a pena ser vivida quando a vivemos em plena consciência. Quando temos consciência das escolhas que fizemos, cada passo dado foi dado por um motivo e sabemos porque. Mesmo quando coisas que fogem ao nosso controle acontecem e temos o total da discernimento das escolhas que fizemos a partir daquele momento parece que aquilo não nos fere. Você pode olhar pra frente, a morte olhando pra você e você pode sorrir e dizer “eu posso ir, eu fiz tudo que eu quis e que eu podia”. Como Nietzsche fala no livro: “Não tomar posse de seu plano de vida é deixar sua existência ser um acidente”

Eu vejo tantas pessoas se queixando de suas vidas. Nada nunca está bom. As pessoas casam, mas não sabem porque. Tem filhos que não cuidam. Tem maridos que não veem. Tem esposas que não fazem companhia. Vejo pessoas seguindo um fluxo de “normalidade”, uma vida de planta. Nascem, crescem, fazem faculdade, arrumam emprego, casam, tem filhos, adoecem e morrem. e educam seus filhos para seguir a mesma ideia. Como Brauer coloca no livro “as metas estavam no ar”. Ou seja, tudo foi dado e nunca questionado. Não sou contra as pessoas casarem e/ou terem filhos, mas será que esse desejo é genuíno de cada um ou uma reprodução? Uma vez uma amiga de faculdade comentou na aula que estávamos tendo de fisiologia da gravidez: “Ah eu vou chorar tanto quando engravidar” e eu muito intrigada disse “Uai então por que você vai engravidar?” e ela respondeu “Ah! Faz parte da vida!”. Ou seja, pra ela a condição de planta de seu corpo estava dada, como quem diz, vou viver isso porque meu corpo diz que tenho que viver, porque a sociedade considera isso como parte da vida. Entende? Será que temos liberdade quando esses valores essas coisas que sequer palpamos nos atravessam e quando percebemos estamos em mais um natal de família escutando seu avô dizer “não case minha filha, aproveite sua vida”. Caramba que vida de merda! Você tá no natal com a sua família, sua esposa, filhos e netas e dizendo pra outra geração não fazer o que você fez porque não vale a pena. Qual o tamanho da hipocrisia que vivemos, não é mesmo? Podemos nos arrepender de algumas escolhas normal, mas de uma vida inteira? Onde essa pessoa tava quando fez suas escolhas? Quem decidiu por ela? Foi Deus? Bom aí eu vou deixar essa discussão pra um outro texto...

Acredito que a única forma de escapar do nosso destino de planta é verdadeiramente escolher a nossa vida. Ter consciência de nossas escolhas. Claro que não temos liberdade total. Dependendo de onde você nasce talvez não tenha oportunidade de fazer todas as escolhas que deseja, mas dentro daquilo que lhe foi dado se você puder pensar sobre isso e escolher de maneira consciente, olhando o mundo ao redor e procurando gatilhos que te libertem a mente mais que o corpo daí talvez quando um diagnóstico repentino de câncer aparecer a morte não parecerá tão assustadora. A morte se cumprirá como parte da condição planta, porque essa não podemos evitar, mas a vida vai ter valido a pena porque vai ser sua a vida e de mais ninguém.

"Você viveu sua vida? Ou foi vivido por ela? Escolheu-a? Ou ela escolheu você? Amou-a? Ou a lamentou? Eis o que quero dizer quando pergunto se você consumiu sua vida". (Quando Nietzsche chorou - Irvin D. Yalom)

dezembro 2016

Menina Beijaflor
Enviado por Menina Beijaflor em 07/12/2016
Código do texto: T5846587
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