Vagalume

- Eu gosto de me ver como personagem de filme nacional.

- De filme bom ou ruim?

- De filme cult, devagar, com sujeitos urbanos em conflito existencial. O que é essa vela acesa em cima da torre do seu computador?

- Ah, simpatia pra ele funcionar. O filho da puta.

- E você, como enxerga a si mesmo?

- Eu me enxergo demais em espelhos. Há reflexos demais onde trabalho. Reflexos nas vitrines, no saguão dos restaurantes. Eu enxergo aquilo que vejo. E não entendo o que vejo. Eu sou aquilo ali, refletido? Eu sou. Não sou. Vejo uma casca.

- Você é um sujeito urbano em conflito existencial.

- Talvez eu seja. Não entendo quem ama a si próprio.

- Eu também não. Há arroubos, claro.

- Sim. Mas, sabe, reconhecer-se diariamente um lixo inútil e tóxico não deveria ser normal.

- Não tem que ser. E não é.

[...]

- Existem umas injustiças grandes demais na nossa vida.

- Em quais você está pensando no momento?

- Bobagem.

- Diz.

- Ah!

- Por favor...

- Há pessoas que não deveriam sair da nossa vida. Não assim, tão abrupta, silenciosa e inexplicavelmente,

- Ahn... Pensando nos seus mortos?

- Não, nos vivos.

[...]

- Meu lugar preferido em todos os lugares é o chão. Gosto de sentar no chão do ônibus. No chão da casa dos meus amigos. Após algum desses exercícios que penso que vão me matar. Do chão não passo.

- Gosta de olhar as pessoas de baixo pra cima?

- Gosto. Somos irmanados na gravidade opressora.

- Olhá-las de baixo pra cima é excitante, devo admitir.

- É um ângulo bem sugestivo, de fato.

- Vira!

[...]

- Foi ontem!? Como foi?

- Foi. Eu me joguei ao chão molhado. Morto. Algum cano estourou lá em cima e a água descia às cascatas através das frestas do forro do teto e o que não mergulhava no ralo ou escoava pra fora ou descia pelos vãos minúsculos entre uma tábua e outra, empoçou a cozinha e depois de passar uns panos velhos e estancar a sangria da água lá em cima, eu me joguei no chão. Morto. De olhos fechados. Um geladinho gostoso nas costas começando a incomodar, ameaçando resfriado. Abri os olhos e lá estava aquela gota se formando no teto. Mira na minha testa. O relógio ia alto nas horas mas o dia insistia em não acabar. A porra do dia. Eu pensei em tanta ruindade de sopetão. Deus, que vontade de pedir desculpas e chorar copiosamente ajolhado diante de tanta gente! O sol, reto na direção dos meus pés, parece ter preguiça de ir iluminar a Austrália. Raios fugidios retardatários dando um ar mortiço à casa, mesmo tudo sendo exageradamente vivo, amarelo, verde, branco, mogno. Aquela gota se jogou e acertou bem no meio da minha testa e foi o estopim para que eu tentasse me afogar em lágrimas. Eu valorizo o choro. Eu não choro em velórios, em casamentos, com morte de personagem em seriado, em vídeos de cães fofos. Eu não consigo me imaginar debruçado sobre um caixão chorando. Eu só choro quando sou açoitado por algo maior do que eu. Angústia. Desespero. Desesperança. Solidão Pobreza. Essas coisas são tão bonitas na literatura. Raskolnikóv, Samsa, e aquele idiota olhando as estrelas deitado na caçamba de um caminhão, tudo muito lindo. Do meu lado, perto da pia, havia ainda lá aquele vagalume.

- Aquele que o gato trouxe, ainda?

- Aquele, ainda.

- Sim.

- Então. Eu olhei pra ele. As patas viradas pra cima se mexendo depois de dois dias. Continuava piscando sua luzinha.

- Caramba!

- Na agonia da certeza de morte, ainda emitindo luz. Pensar nisso me fez engolir o choro. Eu sempre engulo o choro cedo demais e fico com fome.

- Entendo.

- Ainda estou vivo?

26/11/2016

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/11/2016
Reeditado em 14/08/2019
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