Jesus: o único cristão.

O último cristão morreu na cruz.

Outro dia mesmo estive conversando com um sacristão,digno de projeção e relevo social,cidadão de bem,protetor emérito da juventude servil e subserviente a Deus e,obviamente,como todo bom discípulo infatigável da fé,um conservador. Perguntei-lhe alguns dos assuntos mais candentes da nossa vida diária. Primeiramente,sobre a legalização das drogas. "Esses maconheiros estúpidos..."—ele usou uma expresso mais baixa,a qual prefiro não explicitar—"...todos eles estão drogando nossas crianças!"—disse o bom cidadão,com a mais vil expressão de rancor,fumando um cigarro e bebendo cerveja. Perguntei-lhe sobre o aborto,me limitando,a priori,aos casos de estupro e anencéfalia,recebendo como resposta mais uma retórica rafada,algo semelhante a "existe uma pesquisa,da universidade de Bom Samaritano,que diz que mulheres que são estupradas tendem a gostar mais de seus filhos do que outras...". Disse o cidadão de bem,ao passo que me contava seus planos profissionais,dizendo o modelo de carro que queria ter,para impressionar as meninas de 13 anos da sua cidade,no interior do Pará. Fiquei abismado com tal desatino. Senti raiva,confesso,mas continuei a indagá-lo de maneira afável. Perguntei-lhe sobre sua futura profissão e o que pretendia fazer. Pasmem: o filho de Cristo queria ser banqueiro. Nada mais moral e litúrgico do que os juros,não é mesmo? Ele também comentou que sentia raiva de um ex-amigo,que ingressara em uma Ordem ligada à Maçonaria. Disse que nunca poderia perdoar tal blasfêmia,citando a Bula Syllabus,como se a Ordem tivesse vocação inata ao satanismo. Um véu de ódio e mágoa foi posto sobre a claridade e a magnificência de perdoar 70 vezes 7. Quando perguntei-lhe onde passaria o natal,símbolo máximo e de maior envergadura para a fé cristã,recebi como resposta:" ah,passarei em Nova Iorque,a cidade com o maior espírito natalino do mundo." O curioso é que a maior idolatria da religião dele,cujo nascimento é festa mais marcante do mundo ocidental,nasceu no meio de um deserto asiático,falando não o inglês,não o francês,não o latin,mas o aramaico. Sim,uma língua vernácula que hoje entra em desuso,se limitando a alguns povos nômades. Ah,depois de nossa conversa,tétrica e eternizada em minha mente,retirei-me do recinto,tolhido e taciturno,esperando luzir sobre meu espírito absorto algum sinal de esclarecimento,em meio à soturna noite fria de junho. O dilúculo explicativo demorava-se. Até que o vi saindo pelo portão. Gritei seu nome,perguntando aonde estava indo. Pensei "quem sabe a hipocrisia,a mácula,a torpeza,podem ser sobrepostas por uma feição filantrópica,caridosa,harmoniosa e,quem sabe,genuinamente cristã. Quem sabe ele está indo ajudar na campanha do agasalho,distribuir sopas,ajudar a consolidar o que tanto pede em suas orações noturnas,em seu leito de desancanso? Quem sabe há esperança para os tartufos." Nunca estive tão enganado,nunca estive em um devaneio tão delirante quanto aquele. Ele respondeu minha pergunta "vou em um puteiro,quer ir?". Ele,o elitista,o futuro banqueiro de impoluto caráter,era,na verdade,um iníquo,capadócio de marca,filho da mais torpe deturpação do Evangelho. Não nós falamos mais depois. Só desejo-lhe que tenha bons sonhos,uma boa vida no mercado financeiro,boas orações egoístas e absolutamente individualistas. Espero que o anjo não o conduza à barca do inferno,onde o diabo ansiosamente faminto o espera para introduzí-lo no mundo em que a carne é o combustível e o ranger de dentes é institucional. Ah,cristão,tartufo,tenha bons sonhos.

Eu lhe desejo toda paz e amor,todo perdão e esclarecimento. De um não cristão,um pecador condenado ao tártaro eterno,ao digno da mais cristalina pureza moral.

João Izidoro