A última história pra contar
Decidiu que era chegada a hora. Há poucos meses atrás comprará uma cômoda rústica de um antiquário de imóveis. Pediu pra ver por dentro. Era escura e tinha cheiro de verniz e madeira velha ao mesmo tempo... Encasquetara com a ideia já tinha algum tempo, de que deveria tê-la no quarto de visitas para guardar os livros e os cadernos velhos que até então ocupavam espaço numa prateleira debaixo da escada. O plano era ler tudo e todos os livros e cadernos que obtinha, independente do que fossem, didáticos, histórias, jornais, revistas. Começara com uma fixação pelas palavras e pela estética da língua. Gostava de analisá-las, descobrir significados, etimologias e derivações, assim como fazer todos os tipos de estudos ou relações, relativizações com as palavras. A ideia era comprar a cômoda e montá-la. Fixou tanto naquilo até virar uma paranoia ou obsessão. Pediu que entregassem desmontada. Deixaram na entrada do portão. Levou as partes até o quarto e em poucos minutos e até com certa facilidade, encaixou peça por peça até formar o móvel. Era grande e ocupava o quarto de lado a lado. Passou dias dormindo ali e atirado na cama enquanto olhava para peça. Tinha de quitar as prestações e junto com elas, outras dívidas que havia contraído nesses últimos anos. O que faria agora era procurar a defensoria pública para pedir o alvará da retirada dos itens que ficaram de herança e reunir os últimos centavos para dar fim as amarras econômicas que o mantinham preso ao cotidiano e aos problemas. Fixou-se, durante esses últimos anos, no desejo de obter aquele móvel. Escuro, rústico, antigo. Com uma modelagem perfeita, adornos simples, madeira robusta, de boa qualidade. Não a toa pagara quase 3 mil na peça. Observava aquilo e pensava, o quanto combinaria com a arquitetura da casa e ao mesmo tempo completaria o "espaço em branco" da vista. Pensava que era mesmo o da vista. Pensava que todas as casas tinham algo qual estruturavam seu aconchego. Sim, pensava mesmo dessa forma. Uma televisão, um bom sofá-cama, um violão na parede, uma cafeteira elétrica, um lava-louças. Coisas qual as pessoas se sentiam mais confortáveis e ao mesmo tempo, mais humanas. Coisas quais elas sentiam-se como seres materiais. Quais refletissem a sua necessidade e por assim ser, buscassem aquilo como forma de sanar e completar algo qual se precisa. Algo qual só se precisa por que se precisa. Como coisas que nunca precisamos, mas em razão delas, nós lutamos. Para ter algo pelo qual necessitar. Como uma poltrona presidencial ou colchão d'água. Como uma necessidade que reflita nosso suor e acima de tudo, nossa frieza. Para dizer que sim, somo mais humanos, mais materiais. Ou apenas contemplaríamos o tempo como Deuses, racionais, desapegados e totalmente livres. Julgado-nos a nós mesmos o tempo todo, afim de formar uma figura perfeccionista e detalhista de ser. Do ser. Como senhores do tempo e donos da verdade, qual comportam-se em público e buscam sempre o meio termo entre o profano e o sagrado. Buscam sempre o correto para consigo mesmos e com o mundo. Afim de mudar. Transcender. Enquanto aos poucos percebemos e aceitamos a vida sem pestanejar. Buscando e buscando eternamente a resposta do espaço-tempo cósmico que se move e nunca retrocede. Sempre expande. Sempre avança...Enquanto outros, mais humanos, mais materiais, buscam motivos e necessidades. Criam estes, lutam por estes, suam. Cansam e conseguem. Até que tudo que querem é precisar, necessitar. Motivos pelos quais aquilo nos aconchegue. Aconchego que nós queríamos. Que nós criamos. Agora sim, de verdade aconchegados.
Montou o móvel e sentiu-se soberbo por alguns instantes. Era grande e pesado. Carregou tudo sozinho e não precisou de manual. Sentiu-se com altíssima destreza. Pensou que agora tudo se encaminharia. Sentiu que agora tinha um lar. Assim que pagasse todas as contas estaria pronto. Podia terminar a universidades, casar-se, ter filhos... Ficou alguns dias ali no quarto de visitas. Fumava uns baseados e contemplava a cômoda. Pensava como aquilo combinava e completava o local. Trazia novos ares, junto com o cheiro de verniz e madeira velha. Não mais pensava no tempo ou no futuro. Apenas no momento e na combinação perfeita da arquitetura da casa, com a fotografia visual da cômoda colocada ali naquele espaço...Sentia-se findo nesses últimos dias.
Já havia decidido que não esperaria chegar aos 27. Isso nunca. Agora com 26, tinha completado os planos que, até então, não lembraria e não esperaria cumprir. Viveu e foi mais humanos nesses últimos dias. Ele em companhia da cômoda. Sentiu realmente, que o espaço em branco da vista estava completo. Sentiu-se profundamente frio e ao mesmo tempo, realizado. Como o alcançar da tão esperada conquista. Da tão esperada velhice. Mesmo jovem. Reativou o perfil nas redes sociais e ali despejou todo seu "ser humanismo". Não conseguiu contato com os mais antigos e nem fez amizade com os novos. Apenas permaneceu a despejar ali seus instantes, suas glórias e conquistas. Fez um álbum só para a nova posse que obtivera. Fez um texto novo. Abriu os botões do fogão e sentou ali perto mesmo, numa das poltronas. Enquanto aguardou. E adormeceu lentamente.