Estrangeirismo

São naquelas horas, nessas horas que tento dormir que tento dormir, só que meus demônios mais tenebrosos me chamam para brincar.

Eles simplesmente vêm, como se soubesse que não tenho muito para onde fugir deles, pelo menos não nessas horas; nas horas em que não existe ninguém a não ser você e eles. Meu acervo pessoal de pensamentos horríveis.

Hoje me ocorreu que não passo de um estrangeiro nesse mundo, pelo menos foi isso que esses demônios me revelaram essa noite e faz algum sentido. Se um demônio lhe viesse, no meio de uma noite, ao pé do ouvido, com uma proposta atormentadora, naquelas noites em que não se pode dormir tranquilo, vocês aceitariam? Vocês não ficariam curiosos, tentados? Ainda mais quando se sabe que não existem perguntas inocentes nessa hora da noite...

Se ele, sabendo, que você jamais se sentiu encaixado, dentro do mundo, te oferecesse a oportunidade de sempre sentir o limiar do pertencimento, mas somente o limiar, você aceitaria? Tem uma certa crueldade nessa proposta: oferecer para alguém faminto de vida, um aperitivo dela. Um canapé para um indigente tem um contorno de tortura.

Não espero que entendam porque aceitei, tão pouco espero que entendam cada linha do que escrevi até então; o principal problema de um estrangeiro é exatamente ostentar a condição de eterno mal-entendido.

Trago comigo o mosaico de um formidável turismo clandestino; as memórias de um refugiado. A coisa mais importante desse mosaico é que ele só pode ser isso: recortes de lembranças, tristes e belas das viagens que se fez. No máximo pode servir como um cartão postal, um banner de uma agência de turismo enganadora, daqueles que te fazem sentir vontade de largar tudo e mudar. E é nessa medida que existe a enganação: não há só beleza e também não se pode simplesmente mudar.

Quão traiçoeiro é o turismo? A projeção que você quer ver, sempre é isso. Nessa medida o turismo clandestino é ainda pior, não basta conhecer as imagens bonitas. As paisagens de um cartão postal da vida não tem o menor valor sem o subúrbio da existência. A única beleza possível só pode existir e ser sentida ante a impureza mais imprópria da sujeira da existência.

Querer conhecer o feio, o censurado dos outros; mas a alfandega da existência, da aventura irônica que chamamos de vida, articulou um intrigante ofício de me impedir nessa empreitada. Ao condenar alguém ao estrangeirismo, só podemos conhecer a nossa própria feiura, nossa própria angústia.

Deadeye Poem
Enviado por Deadeye Poem em 15/10/2016
Código do texto: T5792327
Classificação de conteúdo: seguro