Uma heresia (ou um ode à paixão)

Em toda paixão há um devir divino, um vir-a-ser Deus. a paixão é um força mitológica... Tudo que traz uma força incontível, traz também o infinito, o impossível, um milagre. Se os cristãos estiverem certos em seu livro, o homem roubou esse dom daquele fruto que causou a cólera divina. O Deus idealizado pelos cristãos, aquele déspota iluminado, em um ato de mesquinharia e de autoridade expulsa nossa espécie antes que possamos comer o fruto da árvore da vida e não sofrer as consequências de nossa paixão, no expulsou antes de sermos imortais.

Não posso intuir outra coisa, já que me sinto impossível quando apaixonado. Só que, por prudência de um Deus vaidoso, não posso me apaixonar sem sofrer as consequências de minha audácia. Sem cair dos céus quando a paixão se vai, de ter que mergulhar no fim dela já que não posso a sentir sem consequências, já que não se pode ter paixão sem morrer um pouco. Só Deus pode apaixonar-se sem sofrer as consequências, sofrer por paixão é a consequência do nosso furto do místico. Por qual outra razão, depois desse episódio, começou-se a pregar que devemos castidade ao céu? Autocontrole? Pureza? Deus não suporta que ostentemos aquilo que era só seu e nós roubamos, não fomos agraciados com o livre arbítrio: tomamos ele a força e até hoje o pai cristão não nos perdoa, tanto que vivemos sob ameaças quando o usamos.

Apaixonar-se é desafiar Deus. Todo grande artista que ousou e conseguiu viver disso pagou o preço da Hýbris: quando seu corpo exaurido de tanta energia se fatigou e ele morreu. Uma vida sem paixão e desejo seria um erro. A vida que se pauta nisso só pode se extinguir rápido, é o preço do milagre pecaminoso, mas olhe para a terra e ouse duvidar das manifestações divinas que foram aqui deixadas por nossos suicidas apaixonados. Ninguém ousa duvidar da divindade da arte apaixonada, do milagre que é a boa música. Certo tipo de cristão, em tom ressentido diz: "É, mas era louco, morreu rápido, era viciado, era drogado". Sim, era e morreu! No entanto, no meio de todo pecado em que ele viveu foi muito mais Deus que o Cristão... e muito mais corajoso que Deus, já que ousou sentir aquilo e pagar com sua vida para isso.

Em certo sentido não posso culpar Deus, pense na desgraça covarde que seria esse tipo de cristão apaixonado? Inconsequente e covarde, certamente o divino não lhe pode ser digno e ele só o nega porque teme a morte mais do que ama a vida.

Para se apaixonar é preciso transcender a necessidade de segurança, é negligenciar o próprio medo e seguir esse instinto divino de não ser contido. É preciso querer o impossível, ainda que seu corpo sofra, ainda que sua alma terrena se dilacere. Se apaixonar é encarar o abismo existencial profundo e não hesitar em desbravá-lo, toda paixão traz em si um pequeno desapegou à vida e um impulso de morte, que só fazemos por querer mais vida do que aquela que aquela que nos foi dada. Sabemos que temos paixão quando a queremos, não importam que nossas cicatrizes estejam abertas, não importa que aquilo possa nos matar e nos exaurir.

Sabe-se que é paixão quando a prudência humana perde o sentido e quando tudo que é pequeno não nos apetece. Sei que é paixão quando a questão da licitude perde a importância, quando amo e as consequências não importam e também quando finalmente as sofro e, convicto, admitiria que faria tudo de novo. O devir do apaixonado é aceitar sempre momentos divinos, ainda que eles custem a eternidade do sentimento de queda (e sua amargura). Mais do que isso: é permitir-se sentir essa queda com vontade e brio.

Deadeye Poem
Enviado por Deadeye Poem em 24/08/2016
Reeditado em 24/08/2016
Código do texto: T5738867
Classificação de conteúdo: seguro