Querer ou não querer - eis a questão
Que tenho eu a ver com "querer" se reduzo todo processo de querer apenas a palavra "querer"! Isso prova que eu quis? Isso é possível apenas para quem pensa em si mesmo como dotado de vontade, como se ele pudesse querer alguma coisa. Ele pensa que pode, pois excluí a possibilidade de que suas ações possam ser reflexos dos encontros com o mundo que o movimenta sem parar, pensando atuar livremente no mundo como se fosse separado dele, do movimento incessante. Ele é um efeito de tudo que se criou até hoje, mas esse homem pensa, por exemplo - que quando ele desfere um soco em alguém isto se deu pela sua vontade, negligenciando toda multiplicidade de movimentos fisiológicos e afetivos do corpo que precisa ser realizado para que o golpe seja desferido. Ele foi arrastado pela vontade, por um impulso que se deu antes de tornar consciente a vontade de desferir o soco - o que lhe chega ao consciente é apenas um pálido eco da vontade.
Inevitavelmente o homem se separa da vida por meio de ideias, por não ter controle sobre esta. Essa separação é que o assusta, essa distância o machuca, o torna fraco e ressentido, com medo da viver. Mas ele não sabe, por isso irá culpar o mundo, e o prêmio será a existência como castigo. Ele não tem espaço interior, passa de um pensamento a outro como macaco pulando de galho em galho sentindo-se desfragmentado.
Já posso ver o poder como germe nascendo de uma planta mais perigosa ainda: O livre-arbítrio. "Eu" como sujeito anterior ao corpo. O poder nasce como algo que nos falta, que desejamos para nos realizar e que se encontra fora de nós. Realizar para quê? Para tentarmos arrumar a bagunça que causamos quando confundimos as palavras com as coisas, e tentar preencher de alguma forma o buraco que arrombamos na vida ao reduzi-la ao pensamento consciente de um "eu" que quer e sonha estar querendo. E que os espíritos compassivos nem pensem em abrir um sorriso em suas mentes, achando que com isso podem julgar a tirania do poder, pois por trás de toda imagem passível se esconde uma terrível vontade de domínio pela carência. Apenas tirando a autonomia do "eu" estaremos livre do poder como algo que nos falta, para nos apercebermos como o próprio poder.
O que quer em mim não sou eu - é vida. Ao pensarmos estar introduzindo a autonomia do sujeito pensante estávamos limitando sua esfera de alcance da realidade, recortando a vida através de conceitos que excluem a diferença do mundo, associando as coisas (O conceito de cadeira serve para todas as cadeiras, mesmo sendo elas diferentes) umas as outras de acordo com suas semelhanças. Mas isso não funciona com o homem. A vida passa a ser vista como aquilo que é identificável, conhecido. Olha as ideias sociais aparecendo! Eis aqui o germe de todo gregarismo moderno, humanista, demasiado humanista; e porque tentar igualar o homem dentro de conceitos racionais o torna embotado e ressentido: Suas forças querem ter vazão, seus instintos querem se expandir, crescer e dar frutos. A vida quer no homem, seja uma vida de abundância ou miséria ela continuará querendo. Temos de querer o que quer a vida em nós para podemos nos integrar a nossa própria totalidade interior. E foda-se o mundo com suas consequências e promessas futuras. Querer a vida é querer o próprio querer num devir eterno.
E para aqueles que se acham detentores do querer e torcem o nariz com desdém diante dessa ideia, peço-lhes humildemente que tentem um dia deixar de querer.