Trinta e Seis Rolos
Eu tenho esse problema grave em supermercados de não olhar nunca para o carrinho de compras das pessoas. Aqui no caixa eu tento disfarçar meu mau humor oriundo da fome e da cara suja de um dia inteiro de suor e pó analisando o carrinho de uma dondoca loira e conto trinta e seis rolos de papel higiênico e é aí que reside o X da questão de não olhar para os carrinhos porque olhando o dela a primeira coisa que passa pela minha cabeça é "nossa, que cu é esse?". Lanço olhares perscrutadores ao horizonte, em direção aos caixas rápidos. O filho da puta que está à minha frente esqueceu o cartão dentro da carteira dentro do carro e foi lá buscar; eu espero. Lá, longe, vejo a mulher que me pôs nefelibata durante meses a fio, a qual eu sempre buscava inconscientemente em todos os lugares aonde ia nessa cidadela; hoje, uma faísca do que senti perpassa minha retina e tudo o que eu sentia se resume a isso: uma fagulha na memória, um sabor agridoce na língua. O problema - o meu problema - é tentar justificar até meus batimentos cardíacos. Pensar que tenho que justificá-los, melhor dizendo. Estranho. É como se eu tivesse crescido numa masmorra, com irmãos maquiavélicos e pais ruins feito o diabo, sendo oprimido até no modo de segurar a colher na hora do almoço. A vida adulta, em si, é um claustro: um aglomerado de decepções e percepções pessimistas embebidos num véu tênue de esperança. Não sei por que não me mato. Porque a caixa não se mata. Encostar códigos de barras num leitor o dia inteiro. Do mesmo modo que passo meus dias mergulhados na imundície de uma oficina o dia inteiro: definhando lenta, indolormente (teoricamente essa palavra não existe, mas lançá-la nos sites de busca mostra o quão nefasta ela pode ser). Porque nem doer dói mais. Talvez amanhã. A hora que o homem chegar e pagar a conta dele vai ser a minha vez de sofrer. Tudo tão caro. A manutenção dessa minha carcaça fadada à terra, à cova, aos vermes, aos esquecimentos, é tão dispendiosa que cada apito do leitor de código de barras é uma punhalada na jugular. Meu aluguel aumentou, a conta de luz veio estourando, tenho mais duas bocas felinas pra sustentar e barraram a cota de dinheiro suficiente pra sanar essas pendengas lá na repartição. Eu sorrio pra moça do caixa porque estou condicionado a pôr de lado minhas mazelas e neuroses e a tratar bem quem de algum modo me serve. Será que ela é esposa de um desses caras que me olham de dentro de seus carros financiados em 48 vezes cobertos com adesivos cafonas como se tivessem alcançado algum tipo de iluminação espiritual transcendental que desconheço completamente; desses, que moram numa taperinha de madeira caindo aos pedaços e que ligam o som alto alto alto tão alto aos finais de semana e bebem Bavária morna, caipirinha de Velho Barreiro, cultivam a unha do mindinho e cagam pela boca o tempo inteiro de que tudo que eu preciso na porra da vida - pra ser bem visto pelas mulheres (depois de fazer a barba, depois de cortar o cabelo, depois de parar de usar cadarço como cinto pras minhas calças, depois de parar de não comer carne porque quem não come carne é veado com e) é de um carro? Não preciso de um carro, penso. Preciso de um coma. Preciso de uma .40 carregada e de uma dúzia de homicídios previamente inimputáveis. Não, moça, não quero meu CPF na nota. Eu quero meu domingo de manhã de volta. Eu quero a inocência de contemplar uma taça de vinho abandonada na mesa, iluminada pela luz baça que vem do sol acinzentado - como aquele que fez domingo. Quero o vir-a-ser de um arrancar de calcinha pela primeira vez. Eu quero abraçar o meu amigo André. Eu chego no meu portão e meu cachorro dança e grita numa agonia extasiante de alegria. Eu lá mereço isso? Bicho besta. As unhas dele rasgam a sacola e a caixa de ovos cai no chão e dois se quebram. Arrombado, digo. Segurando a bicicleta com uma mão, abaixo e puxo ele e dou um abraço com a outra e um beijo que era pra ser na testa e pega no focinho. A louça que me perdoe, hoje. A alimentação funcional que sigo à risca que me perdoe. O mundo que me perdoe os assaltinhos ao oxigênio que eu faço enquanto existo. Nesta noite especial, dedicar-me-ei ao paroxismo de existir. Eu preciso respirar. Sem obrigações senão a de desaprender alguma coisa. A geografia toda desse mundo tem me esmagado. Eu quero respirar, esquecer. Com meu gato mais velho, dono de todo o amor que posso produzir dentro de mim, no colo.
Stereophonics - Maybe Tomorrow
10/08/2016