Lembranças que eu trago no meu pensamento...

Pelas entranhas do mistério da existência vim eu respirar o ar da vida. Em unidade a vida vivia em mim no ventre das possibilidades infinitas; de repente, como num clique de um interruptor - se fez a luz. O mundo se fez consciente nos olhos de uma criança; dá água ao ar, chorei assombrado com o mundo novo que me surgia. Assim imagino eu. E imaginar é imaginar, apenas. Pois eu não existia nesse tempo. Ou existia? Existia um corpo. Fui nascer para mim mesmo quando os primeiro fragmentos de lembranças começaram a se cristalizar na minha mente. Papai e mamãe foram as primeiras memórias dos nomes, depois "Fiódor' se tornou uma identidade, ainda que não muito fixa, como um prego na areia. A energia criativa ainda circulava sem conflitos, havia espaço na consciêcia para se apreciar o silêncio, "o vazio era-me cheio de mim mesmo".

O mundo visto pelos olhos de uma criança era redimido por tudo que a barbari humana já causara a si mesmo. Não tardou e aprendi instintivamente a me identificar entre os corpos, sabia agora me separar deles. Aprendi a palavra “eu”, e esta acompanhou-me pelo resto da vida. Havia agora um centro pensante. "Penso, logo existo". Assim o mundo seguia...

Depois de identificar minha identidade com a palavra "eu", o restante do mundo deslizou para dentro de mim como um riacho, misturando conceitos, crenças, medos, sonhos, desejos naquilo que depois eu entenderia pelos adultos como minha alma. Era lindo, novo e belo. Um mundo inteiro a ser descoberto. Dentro das experiências do cotidiano eu ia me apegando mais as coisas externas, extraindo delas e colocando nelas um sentido de identidade; quando perdia alguma coisa chorava angustiado, ficava irritado, não queria perder. Era como se aquilo fosse parte de mim. Isso meus pais já ensinavam - que perder fazia parte da vida. Mas o problema está na própria construção mental. Pois os pais mesmos estão profundamente imersos na disfunção. A própria base de educação pressupõe os problemas que enfrentaremos.

Na adolescência o tédio pouco a pouco ia se instalando em meu corpo e mente; foi me engolindo, engolindo... O mundo aos poucos perdia a novidade, a vivacidade e a eternidade dos dias frescos de infância se tornava uma ausência presente. A realidade se tornara conhecida ao ponto de passar despercebida, monótona e cinza. Tornei-me nostálgico, melancólico, sempre olhando para o passado atrás de mim mesmo e da vida. O futuro me assustava e foi assim que me vi perdido no mundo com toda humanidade dentro. As drogas logo vieram aos meus socorro. Fui me abrindo ao que o mundo me oferecia. Mas, quanto mais eu provava dele mais fome eu tinha, mais o vazio se tornava presente, mais dele eu fugia. Buscando liberdade nos quatros cantos da terra eu continuava a servir ao mundo para me sentir livre. Enquanto o mundo apenas me receitava remédios para os efeitos colaterais que seus produtos me causavam.

Um episódio que me marcara por toda a vida veio a se realizar na morte de um grande amigo, já no fim da adolescência. Matou-se pela mesma razão da qual eu padecia: de uma negação profunda pela ordem das coisas. Esmorecíamos juntos numa cumplicidade secreta, e por osmose nos influenciávamos e padecíamos de um tédio existencial que nos engolia lentamente, até digeri-lo numa poça de sangue e um buraco na garganta. Ao vê-lo ensanguentado, despertei mais uma vez no mundo. Vi a crueza e a frieza daquele ato, e a vida se fez mais carnal e pesada do que jamais fora. Dessa vez o mundo já estava comigo dentro, ou eu dentro dele – já não sei mais... e eu despertava para ele novamente.

Uma dimensão trágica da vida surgira em meu espírito naquele momento. E o suicídio tornou-se uma porta que um amigo passou e deixou aberta. Quase como um convite. E nos momentos mais difíceis eu a via aberta, esperando pela minha passagem.

Perguntavá-me o motivo de estar sempre insatisfeito, ansioso. Um medo iminente crescia à medida que as divergências aumentavam, o vazio transbordava para fora de mim e tornava a realidade um marasmo. O corpo pesava, nada tinha sentido. E quem diz que precisa ter, não?! Mas não pensava assim. O mundo refletia meu estado de espírito, e notando que todos estavam envolvidos num conflito sem fim, cheguei a conclusão que todos tínhamos a mesma disfunção mental, os mesmos apegos as coisas externas, a mesma doença psicológica.

Tratei de buscar curar a mim mesmo ao ver que todos queriam curar os outros.

Fui percebendo com a ajuda dos livros a ignorância nas pessoas a medida que a tornava consciente em mim; que o problema não estava na vida, e sim na forma como eu julgava as coisas. Aos poucos, percebendo meus limites e ignorância frente a realidade (o que podia ou não fazer, até onde meu braço alcançava )o peso tornou-se mais leve, ainda que pese como a terra.

Hoje sou um misto de tudo isso que escrevi. Hoje! Sombra de incerteza, sonho de mim mesmo. Mas isso é falso, reflexo do meu estado de espírito no momento. Palavras presas que se fizeram livres. Quem as escolheu para mim? Aí barra a inteligência. Se fosse outro momento, seria outro texto, outras palavras, talvez eu contasse uma história totalmente diferente, e outro sentido teria. Aquele que narra é menos real que a própria história que conta, pois se ilude que ele seja a causa do que escreve...

Pergunto-me de novo: quem as escolhe?

Fiódor
Enviado por Fiódor em 13/07/2016
Reeditado em 21/07/2016
Código do texto: T5697045
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