Medo

Parece-me que todos temos nossos medos e que eles, não se diferenciam tanto assim dos medos dos outros. Não me refiro ao medo no seu conceito primário, mas as suas formas de expressão mais brandas, como os anseios e receios sobre o que somos, sobre nossas vidas e sobre o que o futuro nos reserva.

Talvez, o nosso primeiro medo não seja propriamente nosso, mas sim o reflexo do medo de nossos pais quanto ao nosso nascimento. Medo da gravidez, do parto, de que possamos ter quaisquer problemas físicos ou genéticos. E mesmo se formos perfeitos, virá, então, o medo das primeiras horas, dos primeiros dias, meses. Medo, entre tantos outros, de que choremos compulsivamente à noite, sem que eles nem mesmo possam nos compreender.

Os anos se passarão, mas não os medos. Haverá, então, o medo quanto a nossa criação e educação. Seja a oferecida diariamente por eles, nossos pais, mestres por pura intuição e vocação divina, seja a que é delegada aos nossos professores. Medo que adoeçamos, que soframos com desilusões quaisquer, sejam de cunho profissional ou sentimental. Medo, simplesmente, que não sejamos tão felizes quanto eles confessaram que nos fariam em conversas íntimas desde o ventre. Porque, se não formos, eles inevitavelmente se sentirão culpados e indagarão onde e quando erraram, mesmo que eles, nossos pais, jamais tenham responsabilizado seus próprios pais pelos seus fracassos. Medo este que, por vezes, nos parece exagerado, ainda mais quando já somos adultos. Medo, que por mais que tentemos, só entenderemos quando chegar a nossa vez de sermos pais também.

Enfrentaremos nossos próprios medos ainda muito novos. Não medo do desconhecido, pois, afinal de contas, tudo naquela idade nos parece novidade e, portanto, digna de descobrimento, mesmo que isto nos custe tombos e cicatrizes, o que para nós, aquela altura, são condicionantes indiferentes. Teremos sim, medo de nossos pais, primeiras vozes as quais aprenderemos a “dar ouvidos”, e que não só saberão, assim esperamos, mas irão nos reprimir quando extrapolarmos este nosso “instinto de descobrimento”. Esta repreensão virá, talvez, em forma de palavras, muitas vezes ríspidas, talvez em forma de palmadas que, entretanto, doem tanto a nós, que as levamos, quanto aos nossos pais, que as dão. E com o tempo, haverá menos palmadas e mais palavras que nem precisarão ser em tom tão alto para, por vezes, doerem muito mais que as velhas palmadas.

Temos medo quando é chegada a hora de irmos para a escola? Medo da novidade? De novas formas de aprendizado? Definitivamente não. Temos, sim, medo de, ao final de um ano ou um semestre, sermos reprovados por critérios e julgamentos disciplinares muitas vezes questionáveis. Medo de que os amigos que fizemos sigam em frente sem que jamais possamos alcançá-los novamente. Mas há, ainda, um medo que me parece pior: medo de sermos, por mais um ano, sufocados com o mesmo número de informações que, mesmo para aquela pouca idade, já nos parecem indevidas. Lembro-me, por exemplo, de me perguntar qual era o sentido de ainda muito novos, estarmos aprendendo sobre e a vegetação que cobria parte leste (ou seria oeste?) de uma “tal de” União Soviética. Será que, mesmo se um dia questionado, me lembraria dela? Seria, ainda, a vegetação da União Soviética a mesma, dez, vinte anos depois? Será que representa algum tipo de trunfo, decorarmos (para depois esquecermos) dezenas de dados, datas históricas, nomes de reis e de períodos? E assim passamos nossa infância e adolescência na escola aprendendo, devo reconhecer, mas também temendo aprender a cada ano sobre “novas Uniões Soviéticas e suas vegetações”.

Temos medo de, ainda jovens, nos deparamos com a responsabilidade de escolhermos nossa carreira e o medo de não estarmos preparados para tal decisão. Pois, caso façamos a escolha errada, talvez nunca tenhamos a chance de voltar atrás. E, mesmo se tivermos esta chance de nos redimirmos do que nem mesmo deveríamos ser culpados, mas somos, não voltarão os anos que desperdiçaremos. Em tempo: vale salientar que me refiro aqui a uma minoria que tem condições de sonhar com uma careira qualquer, ainda mais com um diploma de curso superior. Para a grande maioria dos brasileiros, o medo não é o de escolher a carreira errada, mas sim o de não haver qualquer carreira à frente para ser escolhida que não seja a profissão de sobreviver, de ganhar dinheiro para se ter o que comer.

Temos medo do primeiro emprego. Será como o primeiro dia de aula no qual fizemos vários novos amigos que se ajudavam mutuamente no decorrer do ano? - ingenuamente nos perguntamos. Poderemos confiar uns nos outros? Se há apenas um presidente para alguns diretores, dezenas de gerentes e centenas de subordinados, isto significaria que não haverá espaço para todos? Vencerá, então, o mais competente ou o mais esperto? O mais honesto ou o menos? E se simplesmente não quisermos participar desta competição? Seremos tidos como incompetentes? Despretensiosos? Seremos demitidos? E, mesmo se chegarmos ao tão sonhado topo, se formos um em um milhão, como nos manteremos lá, atualizados e competitivos? E mesmo que ganhemos mais do que precisamos para sobreviver será que guardaremos o suficiente para termos uma aposentadoria de descanso e paz? Ou acabaremos em asilos esquecidos pela sociedade e pelo governo, para o qual contribuímos mensalmente durante toda a nossa “vida útil”? Seremos apenas mais um dado estatístico? Mesmo na terceira idade, teremos de nos submeter à jornadas de trabalho quando nosso corpo já não se mostrar mais o mesmo companheiro fiel de outrora, capaz de nos acompanhar em qualquer nova empreitada? Seremos vencidos pelo próprio físico ou mortos aos poucos pelo psicológico? Sentiremos vergonha até do próprio emprego ou daremos graças a Deus que pelo menos tal empregador ainda nos vê como força de trabalho?

Temos medo de envelhecer e este chega cedo, muito antes da velhice propriamente dita, quando, pela primeira vez, nos sentirmos incapazes ou limitados no exercício de qualquer função que desempenhávamos tão bem na nossa juventude. Para esportistas em geral, que necessitam do seu vigor físico, tal passagem parece-me ainda mais traumática, quando seus esforços e enfoque deixam de ser o seu aprimoramento, a superação de seus próprios limites, e passam a ser o simples sustento do seu nível, da sua performance. Medo que seus admiradores, torcedores e até mesmo a imprensa percebam o que ele, no seu intimo, já sabe há tempo, mas reluta em aceitar: sua decadência.

Temos medo de adoecer e talvez só nos conscientizemos disto quando estamos efetivamente doentes. Quando nossos desejos banais por bens materiais e reclamações triviais sobre a vida, sobre o que não somos ou sobre o que não temos, se convergem em um só desejo: o de estarmos sãos novamente. E este tipo de medo, aumentará, proporcionalmente, com o passar dos anos, enquanto, paralelamente, se funde ao medo de envelhecer. Teremos medo de sermos noticiados sobre um novo tipo de doença, ou pior seria sobre a falta de cura para uma doença que sempre existiu? E quanto mais velhos ficarmos, mais teremos medo de qualquer nova dor, fraqueza ou mal-estar, pois, a cada dia, a doença terá uma relação mais próxima com a nossa morte. Aquela que chega para, novamente e ironicamente, igualar a todos como no momento do nosso nascimento.

Nada, porém, nem mesmo as doenças para as quais, afinal de contas, há pelo menos medicamentos, parece nos amedrontar tanto quanto o amor que, movido por sentimentos, tantas vezes parece fugir de nosso controle e vontades racionais. Quantas vezes já não quisemos que alguém gostasse de nós ou, ainda, quisemos deixar de gostar de alguém sem conseguirmos? Quantas vezes razão e emoção pareceram viver em completa desarmonia dentro de cada um de nós? Quantas vezes já não nos deparamos com situações amorosas que conseguem, mesmo que momentaneamente, tomar conta e abalar nossas vidas por completo? `

Temos medo do amor, de amar e de sofrer. De não sermos correspondidos, de nos decepcionarmos. Medo de descobrirmos novos sentimentos e medo de lidarmos com eles. Medo de não compreendermos ao outro, nem sermos compreendidos. E mesmo quando sentirmos ter encontrado a pessoa certa e a felicidade a dois, teremos, então, medo que um dia isto acabe, que não sejamos capazes de mantê-lo por toda a vida.

Temos medo de casar, medo da responsabilidade de assumir algo que, pelo menos no momento do altar, nos parece eterno. E se não for, teremos, então, medo de não sabermos a hora de parar, medo de uma separação, de ficarmos e envelhecermos sós, de nos arrependermos. Teremos, ainda, medo de ter filhos, medo que não possamos dar a eles, no mínimo a mesma qualidade de vida que nos foi dada. Medo de falharmos em sua criação. Só então entenderemos nossos pais.

Temos, enfim, um novo medo a cada novo despertar, pois sabemos que haverá pela frente mais uma página em branco do nosso próprio livro, cabendo somente a nós o desafio de escrevê-la. Teremos poucas horas para isto: para o orgulho ou o arrependimento; para a mudança ou o conservadorismo; para o risco ou a mesmice; para a fala ou o silêncio. Páginas escritas poderão ser sempre recordadas ou consultadas, mas jamais alteradas. E assim, a cada final de dia, teremos tido não só a responsabilidade por mais uma página, mas também por fazê-las nosso livro, nossa história. Muitos, sabemos, não conseguirão dar sentido as suas páginas. Faltarão-lhes palavras, lhes sobrarão papel. Alguns, porém, terão a dádiva da “escrita”, da harmonia e, muitas vezes, da ousadia também. Seus livros serão verdadeiras obras primas. Tão belos e ricos que provavelmente alguém mais quererá escrever posteriormente sobre eles, o que chamamos de biografia. Muitos outros livros, porém, jamais chegarão ao conhecimento público, mas seriam igualmente dignos de fama. Livros de pessoas que honraram a cada dia sua existência e que, no anonimato, superaram suas dificuldades e obstáculos desde a infância, cresceram, constituíram famílias, foram bons cônjuges, bons pais, bons profissionais e a cada dia lutaram pelo sustento não só de suas casas, mas também de seus ideais. Pessoas que tiveram na moral, ética e honra, seus alicerces. Pessoas que superaram todos os seus medos. Grandes escritores da vida.

Leo Pimentel
Enviado por Leo Pimentel em 25/04/2016
Reeditado em 25/04/2016
Código do texto: T5616080
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