Breviário de um par de sapatos

Horas e horas. Dias e dias. Anos e anos.

Era esse o resumo do velho par de sapatos, número 39, estilo social mas nem tanto, preto, de couro mais simples do que os clássicos mais chiques.

De longe se podia avistar as marcas de suas flexões obtidas por duros esforços em ruas, esquinas, degraus e calçadas da vida. Como rugas de senhoras calejadas, elas denunciavam a idade do par, mas também afirmavam um repositório de memórias diversas acerca de localizações geográficas, temperaturas de asfaltos e de demais terrenos, além de leves pisadas em chicletes velhos e grudentos, pequenas porções de bostas de cachorros, cadáveres de formigas, ex butucas de cigarros, enfim, de uma infinidade de objetos, cores e texturas pelos quais foi possível pisar durante toda a sua trajetória até aqui.

Eram lembranças de espaços múltiplos, de tempos indefinidos, tudo de acordo com a direção, conjecturas e irrupções daquele par de pernas aos quais obedeciam. Não se tinha liberdade para agir e escolher onde pisar. Não sabia, nem podia saber de antemão aonde estar. Mas, era uma espécie de viajante destinado a não se fixar, muito menos saber onde seria sua próxima paragem. Era esse seu ofício.

No interior, era refém de um peso e de um preenchimento sob medida, cujo calor e odor já se habituara. Mais do que calos, joanetes e chulé, na parte interna do seu compartimento havia um rizoma de veias por onde pulsavam sangue quente e vibrante. Uma espécie de estufa em movimento. Uma sala de máquinas onde os estímulos nervosos acionavam músculos em direção à lugares variados. Era sempre esse o movimento: se chegava pelos pés, mas se ia pelos olhos e pela mente.

Seu tecido de couro se adaptava a cada viagem com aqueles pés de transeunte irrequieto. A cada pulsação, freada inesperada e abdominais de escadaria, sua pele iria sendo quase que moldada a uma medida razoável entre o inchaço humano e a elasticidade daquele revestimento de animal defunto. Saíra da loja com medida de fábrica. Estava agora com proporções de uso cotidiano.

Nem a ponta levemente quadrada, muito menos suas laterais sensivelmente arredondas atestavam a quilometragem de suas andanças. Era uma incógnita interminável a questão da distância percorrida daquele velho e resistente par de sapatos. Ou seja, quem poderia apontar os metros, as alturas e a velocidade dos tais trabalhadores incansáveis? Seu dono habitual, que apenas enfiava seus pés e esperava o desempenho eficaz de seu meio de transporte mais ignorado? O chão, os pedregulhos, os grãos de areia, os pedaços de gramas e sujeiras que acompanhavam até certo ponto seu tráfego rotineiro? Acho que nenhum deles estava habilitado para falar com autoridade sobre tal assunto.

Enquanto isso, o par de sapatos experiente seguia o rumo que lhes ditassem. Apenas reclamava de vez em quando com leves assobios de rangeduras. Algo que apenas incomodava, mas que não impedia seu envelhecimento precoce e irretornável. Brados e protestos de uma dupla de cansados operários, sem força de voz e relevância de representação. Quando ainda lhes restassem forças, talvez um furo no peito ou um rasgo nos pulsos fossem suas únicas opções para chamarem a atenção de seus usuários exigentes, e muito pouco compadecidos. Mas, quase sempre sua morte se dava mesmo era na boca do lixo, sem qualquer honraria fúnebre e sequer homenagens pelos serviços prestados durante sua curta vida.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 08/04/2016
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