Pensamentos XXX

Tudo se fala, nada se ouve.

Percebemos o outro somente como realidade, só sentimos a tua presença como vida consciente, quando deixa-se-nos de existir para nós. Quando vivos passamos uns pelos outros vendo e escutando somente a nós mesmos, encantados, como Narciso por si mesmo, afogando-nos lentamente no nosso mar solipsista. Por isso, talvez, o pasmor diante da morte, não porque sabemos que morreu, mas porque tomamos consciência de que vivia.

O outro é o espaço onde idealizamos nossas interpretações, um pedaço de quem pensamos ser, coisas que ouvimos e vemos como ecos de nós mesmos, como um som vago que se pronuncia ao longe. Cada um enquanto vida tem o outro por vazio, amamos e odiamos como quem ama e odeia um boneco de porcelana: com mais ou menos cuidado, para não quebrar. Vivemos no outro como reflexos de nossas próprias sensações. Há sempre um desintendimento oculto numa conversa que é a aura invisível com que nos conhecemos no outro. É a imagem interpretada em termos de nós mesmos, vinculada ao outro como um reflexo de si mesmo.

Tudo se fala, nada se ouve.

Cada um é um universo desconhecido de si e dos outros, e a linguagem e os pensamentos são as linhas presas aos fantoches que só podem interpretar o teatro em termos do que entende por essas palavras e pensamentos. Vivemos como sinônimos de ideias nossas. Tomamos como sentido a interpretação como sentido da vida, e tudo que vemos e ouvimos se fixou, como uma cola transparente, aos olhos do espírito da vida. E por sentir o que vê, vive o que sente como sua realidade.

Por isso quando sentimos o perecimento do outro, o que sentimos de nós que desperta do seu sono de sobressalto, é a consciência do vazio que se abre para nós, que ele habitava no nosso ser, arrancando-nos violentamente de nosso sonho solipsista, deixando-nos assombrados diante da sensação quase física da morte, como se por alguns instantes soubéssemos como é deixar de existir. Ou nos assombramos por perceber que há vida, existência?

Ainda que de forma fúnebre, e só é fúnebre por causa de uma enxurrada de conceitos que criamos da morte, choramos a consciência da vida no outro que desperta de nosso sonho que a confinamos nas linhas das interpretações que fizemos dele, e não o perecimento da forma física, nem mesmo qualquer coisa que se refira ao indivíduo como perecimento, a não ser que vivia e era consciente.

Talvez por isso algumas pessoas, sem dar por si, depois de saberem da noticia que um próximo morreu, sentem-se culpadas em relação aquele pessoa, e essa culpa gira em torno dos mesmos julgamentos que antes fazia do transeunte, e chora o despertar da consciência da vida no outro em si mesmo como uma morte.

Imagine se tivéssemos o mesmo assombro diante da vida?

Fiódor
Enviado por Fiódor em 14/03/2016
Reeditado em 14/03/2016
Código do texto: T5573201
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