Substância: Mulher
Simone de Beauvoir diz que não se nasce mulher, torna-se uma. Isso vai muito além de questão de gênero, posições religiosas ou militância feminista, antes ilustra o que historicamente foi estabelecido no âmbito social e cultural concernente à mulher. Há nesse enunciado uma implicação maior, agora referente a construção substantiva, no sentido do que evidencia a substância, a essência. Penso que a tarefa mais difícil do tornar-se é o evidenciar-se (todos os verbos na forma reflexiva); primeiro porque a mulher precisa "ver-se" como ação condicionante para enxergar seu "estado de fato". Somente após esse processo é que emerge (sim, esta cá, dentro) a coragem para mostrar-se e assim reclamar seu "estado de direito": Direito de Ser uma Pessoa, de ser forte, independente, criativa, de sentir o seu corpo, indiferente aos rótulos a que historicamente foi submetida. Escancaradamente ou de modo velado, ser para o outro a desalmada insensível, a bruxa medieval, a sapatão pós- moderna, a puta histórica etc, revela o machismo insistente, materializa a burca que nos veste de opressão. Não se pode estudar porque os filhos precisam da mãe (oi?), não se pode dirigir porque é um perigo (ãh?), não se pode ficar bonita porque está se oferecendo (e é?)... Não pude, outro dia, ir à oficina sem sentir o peso da discriminação. Não deu outra, lá estava Aline, bolsa na mão, salto alto, perfume francês com voz e postura de macho, brigando com o mecânico para poder ser respeitada. Cansa isso. Cansa muito. Um dia um amigo falou a respeito... queria ainda ver-me em forma substantiva. Pensei tanto nessa palavra, mesmo já a conhecendo, fui em busca de sua origem, carga e campo semântico para ressignificá-la... É isso. Quero é substantivar-me. Chega de adjetivos e adjetivadores. Feliz dia da mulher para mim denota "nascimento" e nascer é também um processo doloroso, ainda mais quando por resistência há de se renascer repetidamente. Penso que nas relações interpessoais, nos estudos, na tomada de consciência, na independência financeira e sentimental, no equilíbrio psicológico é que torna-se mulher. E antes de concluir, que não nos falte o amor, o cuidado, o amparo, o respeito, a tolerância... Que não nos falte o ninho, o colo, o direito de fraquejar, de enlouquecer, não porque somos mulheres, mas porque somos humanos. Hiponimicamente, eu amo ser mulher. Na verdade renasci, tornei-me, evidenciei e agora, substantivada, sou mulher de fato e de direito, grata a todos os que colaboraram nesse processo de construção de mim e de enfrentamento ao lobo histórico. Hoje tem uma força pulsando aqui dentro, incomodando, assustando, mas tão deliciosa... É a minha substância.