O que Jesus Faria?

Eu olhava pensativo. Era um senhor aparentemente na casa dos cinquenta, negro, estava de cabeça baixa e mão no queixo. Mesmo estando atrás dele nos acentos da rodoviária era possível ver que dormia. A seus pés uma sacola com algumas latinhas vazias. Bem poucas, na verdade, talvez umas quatro. Sinto-me assistindo a uma outra realidade a qual não fui educado quando vejo pessoas buscando por latinhas e garrafas pets para trocarem por dinheiro e poderem comer alguma coisa. Sempre tive comida na boca e dinheiro na mão. Pela manhã meu pai me equipara com mais de cento e cinquenta reais para caso de emergência. Minha mãe me fez leite com Toddy e fui levado à rodoviária num Honda 98 recém-comprado com ar condicionado até a rodoviária. Subi no ônibus às 5h45 e duas horas depois estava no meu destino. Dali peguei um táxi e poucos minutos depois estava na minha universidade, a USC (era particular. Meu pai pagava as mensalidades e fora inclusive ele quem me inscrevera no vestibular, sem eu nem sequer pedir). Tive minha aula na sala de aula com ar condicionado e depois peguei um táxi de volta para a rodoviária. Lá eu comi, li meu livro, comi de novo. Esperava sem ter muito o que fazer pelo meu ônibus às quatro horas. E no momento eu estava ali observando um senhor muito mais velho que, de camiseta vermelha e calça jeans, dormia sentado com a mão do queixo como se aquilo fosse a sua noite de sono em plena tarde de sábado. Observava seus cabelos enrolados tão curtos que parecia ter terminado seu TG há apenas poucas semanas, se bem que sua barba com certeza não estava crescendo há apenas algumas semanas.

De barriga cheia depois de me alimentar de duas esfirras com um intervalo de tempo considerável entre elas, ainda sobrava-me muito dinheiro no bolso. Muito, muito dinheiro. Mais que cem reais. E uma ideia surgiu na minha mente - E se eu comprasse comida para ele? Comecei a elaborar as diversas maneiras de se fazer aquilo. Havia tantas opções de salgados, refrigerantes, sucos. Aprendi que muitos moradores de rua podem estar precisando desesperadamente de água, mas na rodoviária aquele senhor podia fazer uso do bebedouro, e por isso descartei a ideia da água. Contei no bolso da mochila para não precisar diluir uma nota de cem e consegui juntar sete reais. Era o preço exato de um salgado acompanhado de um suco, e deduzi que essa seria mesmo a melhor opção. Mas com o dinheiro em mãos, a lanchonete de um lado e o senhor dormindo de outro, eu comecei a pensar. E quando uma pessoa pensa, você deve saber, coisas ruins são trazidas para sua mente. Meu questionamento foi bem simples e básico, dando abertura a apenas duas respostas: sim ou não. Ele era: Será que eu devo alimentá-lo? Conforme eu cresço vou notando que as pessoas cada vez mais tendem a não ver com bons olhos o ato de caridade. Não por preconceito ou qualquer outra bobagem moral, mas sim para não mimar o morador de rua. A ideia espalhada era que ajudando um morador de rua, você estaria apenas contribuindo para que ele continue nas ruas. Em outras palavras, embora ninguém admita, a razão disso é fazê-los sofrer para não quererem mais viver nas ruas e buscarem por empregos. Se isso é o correto ou não é, eu não sei. E foi exatamente por isso que fiquei tão confuso.

Pensei em Jesus, obviamente. E fiz o que o título deste relato sugere, perguntei-me o que Jesus faria. Não precisei pensar muito para deduzir, é claro. Jesus diria algo como "Mergulhes em um rio sete vezes e vai em paz, pregando a palavra de Deus. E assim nunca mais beberás." Seria simples, fácil. Um milagre ao custo de míseras duas frases. Mas eu não tinha esse poder: o que eu faria seria ajudar alguém sem o curar de sua doença. Sim, doença, porque é bem provável que aquele homem fosse mesmo um alcoólatra. É nessas horas que você sente vontade de ser Jesus. Como aqueles pastores que vemos na televisão, sabe. Realizando milagres ao vivo em rede nacional. Não que eles sejam Jesus de fato, mas com certeza assim como eu eles também querem ser Jesus. Querem. Tudo fica bem mais fácil quando se é Jesus, inclusive fundar uma religião mundial milenar ou juntar centenas de miseráveis em uma igreja e fazerem te ouvir gritar durante horas.

Pois bem, eu não sou Jesus e não gosto de ficar no mundo do "E se". Não sou Jesus e ponto, não há nada para reclamar. Mas não sendo Jesus, como eu faria para ajudar aquele homem? Arranquei de meu caderno um pedaço de folha e escrevi as três famosas palavras, Deus te Abençoe. A ideia seria colocar esse papelzinho dentro da sacola junto com a comida. Infelizmente o meu questionamento principal não se elucidava apenas com isso. Eu devia ou não devia ajudar aquele homem? Talvez o próprio Deus estivesse o castigando por ter feito coisas ruins, e talvez não coubesse a mim alimentá-lo. Ele estava juntando latinhas, ia conseguir comer algo. Não morreria de fome. Com certeza não apenas comeria como também beberia algo. Alguém como ele tinha jeito de quem bebia, entende? Definitivamente bebia. Era um morador de rua na rodoviária afinal de contas. E não o único.

Nada fazia sentido. Ajudá-lo, não ajudá-lo. Se ajudasse eu poderia estar errando, e não o ajudando eu estaria apenas deixando essa passar. Supondo que a bíblia relata todos os milagres de Jesus Cristo então ele com certeza deixou muitos passarem também. Eu tinha sete reais na mão e um papelzinho com o escrito "Deus te abençoe". O suficiente para fazer o dia dele melhor, talvez emocioná-lo. Bastava eu comprar a comida. Eu não perderia nada significativo fazendo isso, ao passo que para o senhor isso poderia ser a coisa mais incrível que aconteceu nesse mês. Mas ele merecia? Cabia a mim? Deus não o estaria o castigando mantendo-o naquele estado? Passei mais de uma hora me questionado sobre isso, observando o homem dormindo sentado. Talvez ele não fosse digno de receber meus sete reais. Há muitas pessoas indignas de qualquer coisa nesse mundo. Ou não há?

Confuso e atordoado, saí dali. Já era hora de eu pegar meu ônibus. Fui parado por um senhor banguela e maltrapido que pediu por dinheiro, dei um real a ele e uma vendedora me olhou com expressão de desprezo. Olhei para baixo envergonhado e fui até a plataforma. Talvez eu estivesse punindo o homem de vermelho por algum pecado que cometeu. Talvez eu que tivesse cometido o pecado. Talvez o senhor banguela tivesse pego o um real e ido direto gastar em alguma porcaria.

Eu sei o que Jesus faria: um milagre. Provavelmente então a indagação principal seja outra: O que eu faria?

14/2/2016