La petite mort

Têm dias que são esquisitos na gente. Isso todo mundo concorda. Sempre quando pergunto aos amigos como estão a resposta é positiva, mas ressalvada. Ser humano é suportar o peso da existência e até aí tudo bem também. Não acredito que tenham ou vão descobrir o mistério da vida, digo, de dar a ela propósito. O que se quer, que é também o que sempre prego como filosofia, é anestesiar-se. Com isso, entendo um escape que situe-se entre sentir-se útil e fugir da inutilidade também. São coisas com mesmo fim, porém de naturezas completamente diferentes.

Sentir-se útil fica mais no campo da adequação social. Então, estudar, trabalhar, casar, comprar casa, carro, ter filhos, ficar velho e amargo e morrer depois. Já o não tornar-se inútil é fuga de todo o anterior e do tédio. Parecem coisas antagônicas, não é? E são. Assim é porque os seres mais humanos não aceitam o julgo de sua liberdade engendrada no mundo que existe antes deles, e no segundo caso, é porque nossos instintos contribuem para a emancipação.

Ser vulgar não me interessa. Neste caso, a ordem das coisas como está posta me desagrada. Transgredir, no entanto, exige força muito grande. Só por isso já admiro os chamados loucos. Não sei se quisera enlouquecer, porém, acho artístico esse destacar-se da massa, coisa dos malucos. As penalidades de ser louco sabemos. Os desvios de conduta são punidos por nossa sociedade excessivamente moral, para não dizer fascista.

O que tenho interesse, portanto, fica para a segunda e aparentemente única opção, a de semi-inadequação. Tenho felicidade em desenquadrar-me deste sexo mesquinho, o qual nos querem fazer acreditar hegemônico. A única hegemonia de qualquer sexo é sua imundícia – não porque eu ache o sexo imundo, mas porque quer-se viver num mundo asséptico, quase ascético, às vezes. Assim sendo, o sexo que não é imundo é menos humano, porque é mais animal.

De animal, vejo em mim o instinto e é dele que procede minha transgressão no mundo. Não mato, roubo, minto um pouco, tento não trair - na questão dos dez mandamentos estou em falta, não que seja religioso também, não sou, pois é parte de minha caminhada contrária. Pois bem, minha desobediência procede deste ambiente de confusão. Mora em mim um calor impaciente. Fervilha uma insatisfação na parte detrás da minha cabeça.

Fosse desenho animado, sairia vapor das orelhas, o que não ocorre. A materialidade me espalha completamente na imaterialidade. Quando me olho do espaço nestes momentos, o que vejo é minha pele esticada ao máximo de sua capacidade. É o teste de minha resiliência, da força de minha mente. O corpo está intacto, quem sofre é o lobo frontal com a imagem das letras pretas no fundo branco nocauteando repetidamente o fundo de minha retina, sem salvação.

Minha grande idiossincrasia está em que não há psicologia que me cure. Estou doente além da cura pela palavra. Meu tédio, posso pegá-lo na mão como um diamante polidíssimo. Quando não quero morrer, gosto de pensar que sou a nova fase da evolução humana. Então me lembro, também estou cínico. Quem me diz são meus olhos. Eles desdenham tudo. Nada nos surpreende. Corpo e mente exauridos, esvaziamo-nos do terceiro item desta desconsolação de existir: a própria fome de ser.

Ser não é pensar, ser percebido, existir em relação ao outro, mas não sei o que ser é, e a filosofia não explica. Não quero me casar, mas ter casa quero, e ser pai também. Quero, entretanto, inventar uma nova profissão, e que esta profissão seja a explicação deste não querer, minha antinatureza. Outro dia, tentando me curar, porque como todos procuro também anestesia, tentei cultuar uma entidade que inventei. Não deu certo, nada aconteceu, pois minhas narrativas são muito contemporâneas, desta forma, aquém da existência de Deus.

Quando nasci, Deus me matou e porque quero reverter esta situação escrevo, para provar que existo, não sou inútil, nem sucumbido. Pode haver um ou outro paradoxo para o que olha com mais vagar num canto menos iluminado desta ideação. Não é incomum. É dialético. Nada se anula, nada anula a mim. Mesmo morto faço guerrilha. Estou pronto para comprar uma briga perigosa com meus inimigos inventados, e se bobear venço todos e passo a morar sozinho no mundo.

Não tenho bem certeza do que ocorreu no ínterim desde a primeira palavra até estas últimas, do que reitero, faço-me inexistir mais um pouquinho, e incomodo. Não sei ser de outro jeito e deste sono que sinto, sei apenas ficar acordado. Meu cansaço é patologia sobrenatural, este texto é meu suspiro de um pretendido alívio.

Fernando Béca
Enviado por Fernando Béca em 29/01/2016
Reeditado em 29/01/2016
Código do texto: T5527597
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