Vida

Há um tempo em que não se pensa no tempo, além de quão lento ele se apresenta.

Aos 30 anos acontece uma despedida que parece dramática, que vem a ser quando dos 29 em diante a contagem de sair dos 20 acelera. É um marco. De fim da juventude. Mas pra mim que nasci velha, velha no melhor dos sentidos, a sensação foi de ter me livrado do que nunca na realidade fui e portanto o que pareceu drama acabou se mostrando um alívio. Eu nunca fui e até hoje não sou, daquela que diz 'ah, meus vinte anos...!' Naquele tempo era um tormento não me sentir cronologicamente ambientada.

Hoje estou na idade que sempre tive.

Os 30 voaram, porque nessa época, até pra quem nasce velho, é tempo de virar gente de verdade, que anda com as próprias pernas. Bem nessa ocasião, quando se vê, a gente não só está andando com as próprias, como anda ensinando caminhos para as pessoinhas que de uma hora pra outra colocamos no mundo. Caminho sem volta. Aos 28 olhei pro berço - bem mais velha, se comparando com a minha mãe - e senti pânico. Não se pode devolver um filho amado, desejado, tão gigantescamente querido. Pra onde havia ido a calma, a certeza biológica que o meu corpo adquiriu um ano antes? E o amor pela barriga que ganhou vida dentro do útero e espichou até me encher de orgulho por abrigar o milagre da criação? Eu levava a minha redonda barriga como quem leva um Messias, um Jesus, um Anjo, uma parte de mim que se aperfeiçoaria porque teria a mim como mãe.

O milagre nasceu. Estava ali no berço que eu desenhei. Um milagre que só mamava, dormia, chorava, descomia, chorava e comia mais e solicitava sem descanso a super mãe que eu gostaria de ser e fui. Sobre cuidar eu não tive dúvidas, mas sobre poder dormir sossegada outra vez na vida, duvidei com a maior das convicções. Sobre ser livre de viver só pra mim, tive a certeza de nunca mais. Um luto inesperado pela morte da liberdade, quando o que se espera é a glória da realização. Nunca imaginei. E ainda era o princípio. O nosso princípio. Eu não podia mais pensar que era velha como sempre me via e sentia. Pra entender e criar uma criança, é bom que se tenha sido criança. Se foi criança adulta, pensando bem, melhor. Ainda me sinto assim. O que na época eu chamava de ser velha, hoje sei que foi ser exatamente o que sou agora.

Então. Enquanto passa o tempo de se auto conhecer, a gente não percebe a passagem dos anos. Não percebe exatamente a hora em que fica mais linda e atraente. Bem quando não estava se preparando pra isso, a natureza outra vez se encarrega. E os 40 anos são uma glória de verdade. O corpo caminha como quem desfila. Uma segurança de quem de verdade não se sente insegura; não é verdade, mas a gente pensa que sim.

O hormônios são mais potentes que no tempo de procriar. A gente pode até arranjar confusão, parir histórias que nem pensa em devolver. E aí a gente vive. E respira com mais leveza porque os filhos já não precisam tanto do nosso oxigênio pra sobreviver.

Esse é um momento em que estamos num meio. A meia-idade talvez. Um meio confortável. De onde quer que se olhe, há uma metade. A que foi e a que vem. Eventualmente. Se dar conta da eventualidade da próxima metade, é um choque que vem aos poucos. Não exatamente um choque, uma realização simplesmente, de que ter chegado até aí pode ser considerado um lucro na existência. Ou uma sorte mais lucro juntos. É o tempo onde as perdas começam a brotar.

O caminho pros 50 é um amadurecimento lento e bom. É o tempo de perceber a sorte de se continuar saudável. De sair vivo e voltar vivo pra casa. Porque esse vai e vem parece certo mas não é. Pessoas morrem, mas em geral a gente não se da conta que a morte pode ser um evento logo ali na esquina. É pra ser lá, mais longe, além das nossas fronteiras particulares.

As mortes próximas e precoces deixam um buraco, um arrancamento, e não um perecer natural. A morte de morte morrida, tende a ser dos outros. Demorei para me dar conta que a cada morte, individualmente também morremos um pouco. Porque somos parte do continente, nenhum homem é uma ilha, já dizia e ainda não jazia, John Donne.

Os 50 em sua primeira metade. É aqui onde me encontro. Nesse ponto que aos dezoito eu pensava que seria praticamente o auge da minha velhice se passasse dos 40.

Cinquenta e dois é um bonito número. Mas para se manter a idade verdadeira, não é possível puxar pelo corpo, pela dieta, pelo exercício, pelo fôlego como há 30 anos. Se eu fizer isso, vou me sentir mais cansada do que me sentia aos 20 quando precisava parecer ter 20 de fato. Agora é bom, porque eu não preciso tanto. Tenho obrigações emocionais com a saúde como um todo, mas tenho visto um corpo mais arredondado. Isso não é de todo ruim, pode ser bom no sentido de manter a pele mais esticada sem ser às custas de lipoaspiração e bisturi.

Meu ideal de magreza nunca alcancei. Imagino alcançar seis meses depois de morta. Sempre digo isso. Mas nessa ocasião, não vai ser de grande serventia. Não deve haver espelho no túmulo ou no além, nem quem goste de esqueletos na vida etérea. E a minha alma é grande. Nunca terei uma alma magricela, elegante, que desfile tal qual Gisele B em passarelas celestes. De modo que está bom assim. Corpo e alma combinando. Gêmeos em volume e bondade.

Logo mais, terminando o 2016, devo completar 53. Isso quer dizer começar o 54. Esses números não sossegam. E ainda é bom. Quanto mais, melhor, porque apesar da saudade do tempo que vai passando neste mesmo instante em que estou ocupada vivendo, vislumbrar um The End, significa que estou cada vez mais perto de cumprir a existência que me foi designada - por acaso, ou por missão de causa pensada. E eu que não descanso nunca, porque entendo que a vida passa num 'vu!', não quero sentir arrependimentos de não ter feito isso ou aquilo. E enfim, em algum momento que agudamente pressinto terei que diminuir o ritmo até chegar o meu tempo de para sempre dessa vida repousar.

Talvez devesse me poupar. Vai que a minha metade esteja passando agora. Eu não suportaria com alegria outros 52.