O balanço da vida

O BALANÇO DA VIDA, OS DEPENDENTES, E OS NOSSOS FANTASMAS

A vida de cada um de nós é feita dum fruir e fornecer permanente, todos os actos, parciais ou consolidados são fruição e fornecimento. Começamos a fruir, alimentos, conforto, atenção, dedicação, logo que nascemos, mas também fornecemos realização, autoestima, alegria a quantos nos estão próximos; começa aqui este compromisso, este equilibrio entre dar e receber. E toda a vida assim vai ser, uma vida de dar e receber, voluntariamente ou não, conscientes ou não.

Receber da sociedade aquilo que precisamos, em troca do que damos, do que fornecemos, do que trabalhamos, deve envolver-nos numa prática de balanço permanente, onde mensuramos e avaliamos todos os actos, todas as atitudes e sentimentos.

Este balanço deve levar-nos a uma reflexão que produza atitudes, ajuste de comportamentos, modelação de hábitos, numa procura permanente de dar, e receber de volta o que é justo e merecido; fundar a nossa autoestima nesta premissa. Convocar a um tribunal interior, actos e sentimentos, procurando um julgamento imparcial dos mesmos; usar de tolerância e compaixão para com os mesmos, mas sempre apontando acções correctivas, para acima de tudo, sossegar a nossa consciência. E quando cito o dar e o receber, não fico por aquilo que é material, e tangivel, (não apenas nos bens e no trabalho) mas também nos comportamentos e nos afectos, na amizade, na solidariedade.

Sairmos das trincheiras, que tanto jeito nos dão, e fazer este balanço permanente, é o melhor conforto para a nossa consciencia, para a nossa vida, para o nosso caminho, a confiança de que não estamos a exigir mais do que damos, e praticamos o altruismo possivel, é dos melhores nutrientes da nossa autoestima. É dispensarmos as trincheiras, e pormos confiança no nosso caminho, e confiança é algo que tanto precisamos.

Nesta reflexão do dar e receber, existe um esteriótipo de individuo que me incomoda particularmente, o tipo de individuo que não sabe ou não quer avaliar o que recebe, em troca do que dá. – os chamados “encostados”. É confrangedor quando observamos o percurso de vida duma pessoa capaz, e percebemos que atravessou toda uma vida, realmente escorada, amparada, na condescendência ou na amarração de um familiar, patrão, ou amigo; mais confrangedor ainda quando essas pessoas não se dão conta, ou não querem dar, ou fingem não dar, do desequilibrio entre o que dão e o que obtêem, e para quem a palavra “gratidão” nem sequer existe. E quando a sua expectativa de retorno falha, são capazes de se abespinhar, protestar, colocar-se em bicos de pés, sobrestimando o pouco ou nada que deram ou que tem para dar; no seu discurso há ressalvas para tudo o que pareça relevante e atraente, mas são capazes de promover a inimigo, num instante, aquele que de perto mais fez por eles, ou mais sofreu por eles. Vimos disso amiude nos nossos empregos, mas pior ainda, dentro das casas onde não entramos, onde conjuges, pais, ou mesmo filhos, são sujeitos a coação ou mesmo à escravidão, por este tipo de pessoas . Por vezes esses seres parasitas, com dificuldade em retribuir, habituam-se de tal maneira, à expectativa de receber sempre, que não conseguem sequer dar-se conta do desequilibrio entre o que dão e o que recebem, ou seja só sabem receber, acham que estão ali para receber, e perdem a aptidão para o reconhecimento e para a gratidão. Muitas vezes são espertos o suficiente, para criarem cénarios que procuram iludir a realidade, relatando de forma empolgante, algo de positivo que tenham feito, mas que merecia ser relativizado. (em linguagem vernácula, são uns cagões). Estes personagens tem mais visibilidade na politica, mas na verdade existem em todas as actividades.

Só que muitas vezes esses dependentes são obra e criação de protectores, que não lhes deram espaço para enfrentar a vida, as dificuldades, e criar defesas; que assim ficam refens de modos primários de pensar e agir, sem conseguir justificar, por vezes sem conseguir perceber, e muito menos admitir as suas dependências. São casos em que o instinto fala mais alto que a inteligencia. – Esta questão levar-nos-ia longe, porque penso que muitas mães e pais, prolongam a proteção, e o sentimento de meninos, nos seus filhos. –desculpabilizam todas as asneiras cometidas, todos os insucessos, e de repente, a cretinice dos filhos está instalada, e dificilmente tem retrocesso. Mesmo aqui, raramente há uma autoflagelação, nada disso, vão invocar o argumento mais fácil: “tiveram pouca sorte com os filhos”.

É preciso uma escola para isto, uma escola do “dar e receber”; uma escola do altruismo; uma escola de esclarecimento interior; aprender a avaliar todos os detalhes do que vai e do que vem, não vamos lá apenas com uma escola da matemática, da fisica etc. É preciso mais, é preciso professores que ensinem a arte de saber colocar-nos do lado do outro; colocarmo-nos do lado do outro, é percebê-lo, não é consenti-lo sempre, não é o tem de ser, mas tambem não é esvasiar a competividade e a procura de sermos melhores. O conhecimento estruturado faz falta, mas a capacidade de reflexão, ainda mais. Mesmo quando pensamos que estamos certos, é preciso refletir. É que a certeza tem tempo, lugar, e muitas outras variáveis, isto é: é muitas vezes relativa.

Irmos ao territorio do outro, colocarmo-nos do lado de lá, saltar a cerca, numa missão de esclarecimento e reconhecimento, não de submissão ou imposição. Ganhar competência no julgamento dos nossos actos e ideias, assente no conhecimento do lado de lá.

Ninguém é definitivamente tirano, ou anjo, mas somos todos propensos a uma coisa e outra, uns mais, outros menos, num tempo mais, noutro tempo menos, muito devido à nossa educação, convivência e contexto em que estamos envolvidos e onde interagimos.

Ouvi alguém dizer que “nós somos bons e maus, à vez”. A nossa inteligencia (o nosso discernimento nunca é imparcial), dá para uma coisa e outra, não é por aí. È muito rápido, e às vezes imperceptivel, praticar o bem, e logo a seguir, a crueldade; e não é preciso ser nazi, para ser cruel, a crueldade pratica-se a todo o momento, com elevado grau de sofisticação; às vezes até imperceptivel, mesmo para o autor. Tudo, porque não saltamos a cerca, e não vamos ao território do outro. É determinante colocarmo-nos do lado de lá, sem isso não é possivel ajuizar nada, fazer balanço nenhum. Se os nazis (antes de serem nazis) tivessem feito isto, não teriam diabolizado os judeus, e os outros povos e nações, e a crueldade sobre milhões teria sido evitada; e toda a historia está cheia de barbaridade e de odios desnecessários e gratuitos.

As religiões dedicam algum esforço com a ameaça de punição divina, com rituais para amarrar as pessoas a crenças, procurando o bem comum, com a promessa de recompensa depois da morte (algo em que provavelmente nem os proprios acreditam) e que ao longo da historia o que tem conseguido é a submissão dos fracos. As religiões e as ideologias fortes, descambam muito fácilmente para fundamentalismos, e aí estragam tudo. As religiões dão jeito aos poderosos e esclarecidos, que assim contam com a colaboração dos fracos, que esperam a recompensa depois da vida. Não é por aí...Aliás hoje cada vez mais, as pessoas percebem que as religioes são um monte de dogmas e de historias bonitas, criadas pelos homens; mas a concertação entre a humanidade, passa pela inteligencia, pelos afectos e pelos sentimentos.a tolerancia, a solidariedade, o altruismo, a justiça, etc. São a chave da convivencia, e da coexistencia, entre pessoas, raças e nações.

Uma prática de exercicio fisico, quando temos um trabalho sedentário, é das melhores coisas na prevenção de doenças, e no bem estar imediato, fisico e psíquico. Porque não juntar o exercicio mental fazendo o balanço da nossa vida ? A auto confissão dos erros, vai permitir depurar as nossas atitudes, e deixa-nos o conforto, a tranquilidade, de não dever nada a ningém, que não saibamos.

Uma vida inteira de assins

Somos assim, e pronto, (é a desculpa pronta), e o sermos assim é o acto de contrição para todas as nossas atitudes e comportamentos- assumimos e justificamos o sufoco com este clichê, com esta desculpa tão acessivel e tão fácil. E a meditação parece que não é precisa.

O trabalho sujeito a uma organização hierárquica, ou a vida familiar, tendem a apertar a nossa autonomia de carácter, a condicionar os nossos comportamentos; é importante aqui que aquele balanço, nos dê segurança e fortaleça a autoestima.

O convivio com o grupo ou a familia podem servir para descontrair, aliviar tensões, e recuperar alegria, mas o enquadramento permanente, dificulta muito o pensar mais longe. O casamento acaba muitas vezes por constituir a negação de nós mesmos, a negação do EU, uma forma envergonhada, atipica, de prostituição.

Sair da familia para a escola, o emprego, voltar para a familia, para o grupo, para os amigos, são muitas vezes asfixiantes e condicionantes, tornam-nos influenciáveis, formátam-nos o caracter, cumprimos um ritual que condiciona o nosso discernimento; toda a gente devia ter o previlégio de ter tempo para si, e só para si, para poder refletir sobre todas as coisas, consentindo e exercitando o contraditório. Poder ler um livro, um concerto, uma pintura, um passeio, mas sózinhos, ou então com alguem que se indentifique com os mesmos interesses, e que saiba estar calado, quando é para estar calado. Costumo fazer caminhadas, e quando procuro a comunicação com a natureza, os aromas, as cores, oiço atráz de mim, conversas rasteiras, sobre a prima, o namorado da amiga, os petiscos daquele almoço – estas pessoas não se soltam, estão sufocadas e sufocam, são perigosas, porque são actores de um filme com guião estabelecido, ou a estabelecer.

No grupo temos que pensar ao nivel da palavra, pensar nas consequencias daquilo que exprimimos, e ainda por cima, colocar os nossos pensamentos e temas, abaixo duma fasquia, que é o discernimento e apetência média do grupo. Ou então temos que rodear o assunto para nao ferir susceptibilidades.

O grupo condiciona, ninguem expõe dúvidas que o grupo não perceba, ou não esteja interessado, ou não acompanhe; o grupo faz-nos prisioneiros do banal, do tangivel. Ainda que por vezes faça surgir um click, ou um reconhecimento, e aí é confortável o sentir que não estamos sós, sentir a projeção. Mas cuidado com o reconhecimento das nossas ideias – pode dar jeito ao outro (aproximação), mas por vezes não nos ajuda.

É bom pensar sózinho, ir mais longe, criar essa oportunidade para nós mesmos, pensar em profundidade, mas sem tropeçar nos detalhes e nas sombras; é preciso saber relativizar; e evitar o pensar fácil, o pensar da forma que nos dá jeito, alienando a racionalidade. – quantas vezes somos levados a comportamentos irracionais e desadequados, que só percebemos como tal com o passar do tempo, ou com o afastar das emoções. Outras vezes é o nosso subconsciente a propor-nos uma recompensa – (pensa assim, porque é bom, e reconhecente) - um antidoto rápido para a angustia; é o pensar a quente, mas depois quando a irracionalidade se manifesta, se prova, e a percebemos, paga-se caro, porque o mal já está feito.

Todos os dias fica um resgate por fazer, o resgate de nós mesmos; todos os dias somos a confirmação ou o contraditório dos nossos colegas, amigos, chefes, familiares etc., e nunca chegamos a ser nós próprios, - se é que existe o “nós proprios”. É que de facto somos um produto da sociedade, manipulados pela sociedade, pelos media, e todas as entidades do meio envolvente - vivemos numa cerca, cercados, mas simultaneamente somos manipuladores, por vezes involuntários, mas somos – fazemos parte da cerca, apesar de cercados; por isso somos perigosos. Um cineasta com 102 anos dizia: o cinema não evoluiu, porque a humanidade não evoluiu, somos assim à milhões de anos. Vejam o que uma nação, uma etnia, pode fazer, quando elege outra etnia, outra nação, como suposta causadora das suas dificuldades, vejam até no grupo, a facilidade com que se elege um bode espiatório, sempre que os problemas se avolumam, a habilidade com que formamos pactos com uns para achincalhar outros, numa cadeia prolongada de conivencias e conveniencias, quase inconscientes, e quase involuntárias, mas que em contexto propicio, se pode avolumar, e conduzir à tragédia.

Depois há os medos, às vezes tão discretos como um alçapão, e que nos armadilham o caminho.os medos servem para criar anticorpos para o combate; o problema é quando criamos anticorpos em excesso, que nos podem atrapalhar mais que os medos. É preciso sossegar os medos, avaliando-os, porque às vezes correspondem a ameaças que não existem, são produto do nosso imaginário, ou avolumados por conta própria - são os raciocinios pelo caminho mais fácil – (dá-nos jeito ir por aqui) . mesmo que a ameaça seja real, não adianta ficarmos paralizados, reféns. Mas quando refletimos, e achamos que a culpa não nos pertence, é bom esvaziar os bolsos de pedras, sacudir o ódio, e cultivarmos pelos medos, ou pelos autores dos nossos medos, uma outra coisa, - a compaixão. Somos herdeiros, desde há milhões de anos, de ódio, e compaixão. Uns e outros impulsionam a vida, e são precisos, mas tem o seu lugar, tempo, e circunstancias. Mandela, Gandi e tantos outros, teriam sucumbido se não cultivassem a compaixão; foi a compaixão pelos algozes que os fez resistir.

Ter pena dos nossos fantasmas, é a melhor forma de afronta, e torna-nos mais fortes do que eles. Podemos condená-los à cadeira electrica, em fila indiana, mas como fantasmas que são, não vao sucumbir, e de vez em quando parece que andam a arrastar móveis no sótão do nosso subconsciente, - é melhor ter pena deles. Os nossos fantasmas são parasitas, e nós somos o hospedeiro, e não adianta negá-los, eles dão-se bem com o hospedeiro; o único antidoto, é conhecê-los, criar-lhes portagens, cancelas com arame farpado, e por fim, desprezá-los; porque se lhes franqueamos o caminho, ficam inchados, soberbos, e vão continuar encavalitados em nós.

A forma como ultrapassamos os medos, deve exercer jurisprudencia, no nosso consciente, porque nem todas as situações são novas, muitas são o decalque disfarçado de outras, e vão-se avolumando à falta de uma resposta adequada, dentro de nós próprios.

Com o avançar da idade, os medos vão fazendo uma roda viva, à nossa volta, eles zombam de nós, vão-se juntando em algazarra, por vezes tiranizam-nos, e aí, em vez do recurso aos fármacos, era bom reconhecer, que em boa parte, eles existem, porque nós os elegemos, os protegemos, e os alimentamos.

Muitos de nós, cavalgamos outra atitude, que é revisitar o passado, na procura de consolo para o presente. Puro engano, porque do passado, elegemos apenas os factos que nos confortam –nunca vamos buscar o todo, e mesmo esses factos vem pintados e bordados a nosso jeito.

Alguém em Setubal escreveu assim, numa parede: “Será que há vida antes da morte ?” . A minha tradução é: “Será que vale a pena ?” Quando nos sujeitamos a uma praxe de facadas continuas, sonhos e esperanças afundados, ainda que com alguns momentos de catarse pelo meio. Será que vale a pena ? Depois pensamos: mas há os nossos filhos, e queremos protegê-los, retirá-los.

bom, não adianta , a crueldade estende-se aos nossos pés, e somos nós que a estendemos, somos autores, e não apenas actores. - quais piranhas do tempo.

Hoje, esteve alguém comigo, e riu, e riu, acerca de certas circunstancias e certos episódios passados; mas esse alguém, - eu sabia, - tinha uma filha com bracinhos pequeninos, e eu achava que não podia rir, - mas ria e ria – como pode ir longe uma representação...mas tenho o direito de a avaliar como representação ? oh! O adjectivar é promiscuo e perigoso...

luis martins
Enviado por luis martins em 16/12/2015
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