Teias de aranha
Há alguns dias atrás fui atraído por uma manchete que discriminava em letras garrafais a apresentação pública de uma peça teatral chamada de indecorosa, grosseira e ousadíssima, subsidiada com dinheiro público através de um órgão governamental. Essa apresentação, envolvia artisticamente uma discussão de pontos de vista sobre uma determinada busca, efetivada numa parte ou região do corpo humano, nomeadamente uma das que frequentemente são relacionadas com práticas de sodomização, pornografia e questões que envolvem a falta de decoro e/ou marginalidade. Estou a falar da região anal, que nada mais é do que uma parte do corpo humano. Embora na cabeça de uma grande parte da população, seja observada como um tabu a ser escondido e preservado de tudo e todos.
Mas o que mais me espantou, independentemente do propósito e qualidade da peça (que não sei se é boa ou má), foram os comentários postados em rede social, atribuindo a essa questão críticas, não só de cunho diretamente sexual, pela indignação referente ao tema apresentado, mas também sobre a questão de ter sido subsidiada com "o nosso dinheiro" (verbas públicas). Como se o teatro e as artes não fossem entidades livres, autónomas e conscientes que servem para discutir ideias e questões do interesse público. E como se isso não bastasse, ainda acusaram o governo de compactuar com a pornografia e falta de escrúpulos. Certamente, não venho aqui defender os autores da peça, nem dar créditos a quem autorizou a sua exibição. Somente ajudar o leitor e a população em geral, a refletirem sobre alguns e determinados pontos de vista.
Curiosamente, pude verificar que nenhum dos ofendidos perguntava ou esboçava algum interesse ou curiosidade em saber sobre a peça em si; qual a mensagem ou leituras implícitas no texto e imagens. Apenas desconsiderar o assunto e associá-lo a práticas indecorosas e vergonhosas. Deixando sugerir que, na maior parte das vezes isso é fruto de uma educação deficiente e da falta de elementos que permite a análise e apreciação de conteúdos considerados não ortodoxos.
A falta de conhecimento e abertura para as questões artísticas e criativas é uma grave lacuna em alguns modelos de sociedade. Um povo que não lê e não escreve, não pode ter um juízo crítico aceitável sobre questões que fogem um pouco ao crivo comum. A sociedade é constantemente bombardeada pela mídia, sugerindo modelos obtusos de comportamento consumista e de alienação. Pensemos, por exemplo, numa questão semelhante a esta ao ser apresentada num país mais desenvolvido e progressista, como por exemplo uma Suécia, Dinamarca ou Finlândia. Certamente não teria o cunho pérfido, grosseiro e animalesco que teve aqui. As pessoas se esforçariam por procurar uma leitura que se enquadrasse em algum interesse social ou pessoal. Mesmo que, à partida não tivessem os elementos nítidos para o considerarem. Teriam a curiosidade intelectual suficiente para, antes de mais nada, tentar achar algum fundamento válido.
Na minha terra, há uma expressão engraçada que qualifica depreciativamente aqueles que não fazem isso. Ou seja, dir-se-ia que essas pessoas, que fazem juízos premeditados e negativos das coisas que não entendem e/ou não querem entender, têm "teias de aranha" (ou caca de galinha) na cabeça.