somos nós apenas formigas?

Formigas atacam os restos deixados nos pratos de comida, e lá ainda se encontram quando os coloco na pia para lava-los. É interessante perceber a sensação de poder e indiferença em relação a esses minúsculos animais de exoesqueleto quitinoso, com três apêndices em seu corpo. Eles tem pouca percepção do mundo ao seu redor, não entendem que o universo se expande continuamente rumo ao infinito, desconhecem a miséria da existência, nunca leram os grandes pensadores que engrandeceram o homem, da escola Socrática aos catedráticos de Frankfurt e muito menos que o destino de suas vidas encontram-se sob minhas ações, continuam seu banquete final. Eu aciono a água e elas desaparecem, padecem à força da água da torneira da cozinha, que piedade poderia eu demonstrar diante de seres tão indiferentes à minha existência. Este é meu grito de rebeldia, a imponência de poder determinar uma vida, nem que seja a de um miserável inseto, ou apenas a minha indiferença em relação a ser tão dissemelhante a mim. De tempos em tempos eu costumo me auto afirmar perante as formigas, após destina-las ao ralo, repito mentalmente em uma espécie de masturbação moral, eu tenho o poder. Poder! As vezes imagino se é assim que os que conduzem nossas vidas, os que desequilibram a balança dos homens, os que possuem valor, nossos políticos, nossos patrões, nossos pais, agem sobre nós. Somos apenas formigas a seus olhares? Somos nós reféns da indiferença, da inferioridade nos imposta e da distância de nossas condições morais. O homem mais forte é destinado esmagar os mais fracos? A tomar em suas mãos o destinos dos menos afortunados, escolhendo seus fins com um sorriso sádico no rosto? Parece natural ao ser humano esta relação íntima com a opressão. Se somos apenas formigas em um prato de restos, eu não sei, porém em minha repetitiva rotina eu continuo afogando esses minúsculos seres com meus molhados jatos de auto-afirmação. Exalando pela cozinha a mediocridade da minha espécie. E esperando o dia em que serei eu, o levado pela correnteza da vida, sem chance de reação, levado pela força do destino, mais uma peça encaixada no quebra-cabeça.