Sombras na parede de um quarto em chamas.

It's never over.

He is the tear that hangs inside my soul forever.

- Love, you should’ve come over, Jeff Buckley.

Uma única certeza para a noite: ela cometeu suicídio.

Apenas uma palavra havia a levado até àquele derradeiro ponto. O sabor desconhecido das palavras, como o paladar inábil de quem jamais provou um doce exótico, lhe inundava a boca, pouco a pouco, transformando letras em palavras, palavras em parágrafos, parágrafos em monólogos mentais e imaginários.

Como se pudesse fazer algum mínimo e decadente sentido. Como se ela não pudesse vomitar tudo em uma folha de papel e soar bom o bastante. Mas fazia sentido. E ela podia escrever. Ela podia, ela podia. Mas lhe disseram que não, numa frase que lhe acertara o peito, bem em cheio. Isso poderia ter soado aleatório, porque ela estava acostumada com tantas podas, tantos cortes em suas asas invisíveis. Estava anestesiada. Mas os lábios que proclamaram aquela frase tinham um sabor conhecido e continham o peso de um universo inteiro. Infinito e inexplicável.

Estava tocando Lana Del Rey, com sua voz morna e assustadora.

Blue jeans, white shirt

Walked into the room

It was like James Dean, for sure

Ela bebeu um pouco do Uísque que encontrara num canto qualquer de um armário esquecido. O gosto não era bom, mas adormecia seus sentidos. E, talvez, era daquilo que ela precisasse. Inércia, estagnação, letargia.

A cadeira foi arrastada no meio do quarto, num gemido de protesto, arranhando o chão frio do cômodo. O lugar não era nem grande demais, para deixar espaços para pensamentos aleatórios, e nem tão pequeno, a ponto de não caber toda a sua desilusão. Ela sentou-se, em silêncio, como se velasse um corpo inanimado num barco repleto de flores. A quietude exterior combatia seus demônios interiores, que gritavam em berros constantes e ritmados, grunhidos roucos e violentos como trovões em uma tempestade.

They took you away

Stole you out of my life

Fechando os olhos, ela enxergou uma linha tênue que dividia mais um ciclo de sua vida. Uma vida que ela não queria, mas não tinha tanta opção. Entropia. Era a palavra que a tinha carregado até àquele momento, até ali, no meio daquele quarto. Ela encarou a parede branca a sua frente, num misto de devoção silenciosa e medo do futuro. Um futuro que não estava mais visível em seus sonhos, nem em sua realidade abstrata.

Entropia.

Mais uma palavra desconhecida que a agradava, como todas as coisas desconhecidas, que causam pavor e admiração, ela degustava aquela palavra como um veneno que, ao mesmo tempo, que mata, é capaz de gerar um antídoto. Ela percebeu que, durante todo aquele tempo, ela era seu próprio veneno e salvação.

Entropia era um conceito interessante. Ela sorriu para o vazio do quarto. Não tinha ninguém em casa e tudo estava sendo consumido em chamas. Labaredas alaranjadas que queimavam tudo. Seus livros preferidos, fotos que ela não jogara fora, ursos, canecas, sentimentos, passado. Passado. Passado.

Sometimes love is not enough

Ela pensou em escrever, mas não encontrou um sentido para o que queria dizer. Fechando os olhos, aceitou sua falta de inspiração. Aquelas longas noites de insônia, regadas por café e poesia, lua, melodia e amor, não existiam mais. E, mesmo com medo de admitir a si mesma, ela sabia que aquilo tudo jamais existiria novamente. Todos os dias doces, sonhos bons e músicas que diziam algo, haviam ficado em seu passado, sendo apagadas repentinamente e com intensidade, como o mar apaga uma frase escrita na areia.

Come and take a walk on the wild side

Choose your last words

This is the last time

‘Cause you and I, we were born to die

Ela desejou chorar, mas não o fez. Ela desejou gritar, mas apenas encarou a parede branca do quarto. Ela abraçou o que era: uma casca, cuja vida fora tomada aos poucos. Ela já não queria mais viver. Seguir adiante era como uma piada interna. Ela observou as folhas avulsas jogadas em seu colchão, perto do travesseiro. Passara a semana toda lendo sobre aquele estranho conceito da física. Justo ela, que detestava os números com todas as suas forças, pois eles a lembravam de quantas vezes ela havia falhado com os outros e, pior ainda, consigo mesma.

Vinte e três anos.

Longos dias, breves noites.

Ela espiou as palavras naquelas folhas e se recordou o que havia lido.

Aquele estranho conceito da termodinâmica dizia que o estado natural de tudo era o caos, nunca a ordem. Era mais fácil desarrumar do que arrumar. Ela tinha bastante certeza de que jamais conseguiria ajeitar sua vida, até mesmo porque tudo caminhava cada vez mais para o caos. Entropia resumia tudo. Entropia resumia sua vida.

Crise dos vinte e poucos anos. Ela estava passando por uma crise. Suspirou, aliviada, na ridícula “quase” certeza de que, depois de algum tempo, tudo aquilo iria passar e as coisas voltariam a um estado de ordem e singularidade. Mas, então, ela descobriu que a vida precisava de caos, pois ele nos obrigava a mudar. Ele mantinha o mundo vivo, movendo-se. Ele tirava tudo da inércia, das frases feitas, das conveniências, dos falsos sorrisos e palavras fingidas, das obrigações cotidianas (frias e insalubres). O caos matava os estereótipos, as expectativas, as rotinas.

Ela necessitava do caos.

Ela precisava que aquele fogo lhe invadisse.

Ela deixou tudo queimar.

Seus livros ficaram para trás, suas histórias não foram mais contadas, as pessoas que ela amava sofriam em silêncio, como se nunca tivessem feito parte de sua vida, muito embora ainda estivessem ali, na memória vívida e constante.

Ela deixou o fogo apagar suas dores e frustrações.

Ela suicidou-se.

Dentro de si.

E quando tudo acabou, restou-lhe o beijo infinito e mágico das sombras que permaneceram na parede. Após o fogo, as cinzas. Após as cinzas, um novo pássaro. Pequeno, frágil e apavorado. Ele observou o mundo ao redor, parecia grande demais, mas ele tinha asas.

Ele tinha asas.

Ele tinha.

E podia voar.

We were born to die.

Ana Luisa Ricardo
Enviado por Ana Luisa Ricardo em 08/11/2015
Reeditado em 21/11/2015
Código do texto: T5441572
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