Trans.1

"Lembro-me pouco da primeira infância, talvez tenha sido a fase mais feliz da vida, o não saber é muitas vezes melhor que a descoberta e definitivamente, era mais fácil quando eu não sabia. Sei, por quem acompanhou o meu crescimento, que a identificação com o gênero feminino manifestou-se desde sempre, o que para mim era natural, era para outros, algo a ser combatido. Não poderiam supor transexualidade, acho que sequer tinham ouvido o termo. Vivia num ambiente predominantemente feminino, avó, mãe, uma tia, cinco primas e muitas vizinhas, mas existiam o meu avô, meu irmão, meu tio e de forma bem ausente, mas de meu conhecimento, o meu pai, referências masculinas, que não dariam crédito à tese de que o comportamento delicado fosse por falta de exemplos viris. Tenho a perfeita lembrança do meu tio, confidenciando a uma vizinha, o desgosto que sentiria ao comprovar os boatos de uma possível homossexualidade da minha parte. Nas palavras dele, seria uma vergonha para a família, já que não tínhamos dinheiro, deveríamos ao menos ter uma reputação ilibada. Aquilo foi cruel de tantas maneiras, não entendia o motivo de causar nas pessoas que amo tamanha desonra, mas entendi naquele instante que alguma coisa não estava em seu lugar. Antes disso, essa sim, a primeira recordação de uma estranha vida, volto aos cinco anos de idade, primeiro dia de aula. Passada a raiva por não conseguir a lancheira rosa que me encheu os olhos nas compras do material escolar, não restou outra alternativa senão aceitar a azul em formato de carro de corrida. Na cabeça da minha mãe, era preciso injetar em mim o máximo de testosterona possível, podiam culpá-la num futuro bem próximo, se o adorável garotinho, de olhos verdes e cabelos encaracolados, sucumbisse ao desejo proibido do amor entre iguais. Apegam-se ao que dois homens ou duas mulheres fazem na cama, como se isso determinasse uma relação, ou mesmo sentimento, isso é sexo, é diferente, mas nem era o caso, eu não era gay, embora pense que seria bem mais fácil encarar a vida tendo como única missão, me descobrir, me aceitar, sair do armário, ou não sair, mas desfrutar do equilíbrio entre corpo e mente, não sentir estranhamento com a minha imagem, identificar-me como alguém do sexo masculino. A Escola era bem perto de casa, cada passo me levava rumo ao desconhecido, à desconhecidos e a uma série de situações que marcariam tão negativamente a minha existência. Se fizesse ideia teria prolongado aqueles passos, teria feito durar dias, meses, anos, teria nunca chegado..."