DIREITO NO OLHAR KANTIANO

O direito tem como finalidade estabelecer normas e regras que venham a nortear a ordem em determinada comunidade, e assim possui leis que restringem e impõem limites as ações dos indivíduos. Com isto ele exercerá sobre estes coerções se porventura violarem e infringirem a lei estabelecida. Em outras palavras, o direito é um conjunto de regras que regem as relações entre os homens, através de leis que os coage a agirem de forma reta e justa, caso contrário, há punições segundo estas mesmas leis. Pois o direito refere-se logicamente a relação externa de uma pessoa para com outra, no que as suas ações possam influenciar-se de forma recíproca. Além disto, este conceito significa também a relação do arbítrio de um com o arbítrio de outro. Logo destaca Flamarion Leite (1996.p.69)

O direito é para Kant o complexo das condições formais que permitem a coexistência dos arbítrios dos indivíduos particularmente considerados, determinando a esfera de liberdade dos indivíduos e coordenando-a de tal modo que a liberdade externa de todos possa coexistir segundo uma lei que seja universal.

Assim o conceito de direito está assentado sobre a exterioridade e não na interioridade da moral, pois o que está valendo neste momento é a relação racional e formal entre os indivíduos. E esta formalidade refere-se à coexistência dos arbítrios, sem considerar os conteúdos sensíveis.

Logo, percebe-se que o importante não é a indagação se a ação é realizada por dever ou não, mas o importante é a forma da relação exterior.

O direito está, impreterivelmente ligado a leis, e o seu conceito quando identificado à obrigação não passa de uma relação externa de uma determinada pessoa para com outra;

O conceito de direito, enquanto vinculado a uma obrigação a este correspondente (isto é, o conceito moral de direito) tem a ver, em primeiro lugar, somente com a relação externa e, na verdade, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam ter influencia (direta ou indireta) entre si. (KANT. 2003. p76)

Isto é claro, levando-se em consideração obviamente as ações destes indivíduos entre si e escolhas que estarão também se referindo à liberdade dos outros.

O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade (KANT. 2003.p.77)

Kant volta-se a uma “nova” maneira de tratar o direito, criticando a tautologia lógica e o seu dogmatismo ontológico, além também de alguns exageros de certos empíricos que aconteceram anterior a ele. O que na verdade Kant tem em mente é o direito na sua concepção geral, como sendo uma restrição da liberdade de cada indivíduo para que então se harmonize com a liberdade dos demais indivíduos. Por sua vez este pensador na sua Metafísica dos Costumes distinguiu de maneira clara o direito natural do direito positivo . No entanto, que a teoria do direito seria o conjunto de leis que são suscetíveis de uma legislação exterior e ao passo que esta legislação evidencia-se, vai ficando claro a existência da ciência do direito positivo.

Este direito em si é aquilo que prescreve leis de determinado local/lugar e tempo. Assim, esta noção de direito é voltada a uma obrigação referente à relação exterior de uma determinada pessoa para com outras, onde suas ações de fato podem ter certa influência sobre outras ações. No entanto, esta noção evidencia sem dúvida a relação do arbítrio de quem age para com outro.

Neste sentido, ao analisar este e outros fatores percebe-se que o direito tem na verdade por objeto aquilo que se reporta aos atos exteriores, isto é, o que se dá é tão somente a exigência dos princípios exteriores de determinação para o arbítrio, não levando em conta as intenções morais.

Todo direito é uma relação entre seres humanos (só o ser humano se envolve numa relação prática), na medida em que tal relação se mostre como ações que como fato, possam exercer influência, num noutro, direta ou indiretamente. (SALGADO. 1995.p.270).

Porém o direito está fundado na consciência da obrigação de todos segundo a lei, pois fica subentendido que tanto o direito quanto a faculdade de obrigar seria a mesma coisa. Nesta linha Kant (2003.p.78) explicita o exemplo do credor em que:

Assim, quando se diz que um credor dispõe de um direito de exigir de seu devedor que pague sua divida,isto não significa que ele pode lembrar o devedor que sua razão ela mesma o coloca na obrigação de fazer isso; significa,ao contrário,que a coerção que constrange a todos a pagar suas dividas pode coexistir com a liberdade de todos, inclusive a dos devedores, de acordo com uma lei externa universal. Direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa.

É a ética que exige que os indivíduos cumpra um compromisso assumido em um contrato, mesmo que a outra parte não pudesse coagi-los a tanto, mas ela assume a lei (pacta sunt servanda) e o dever correspondente como dados pelo direito.

Mas, esta obrigação no âmbito jurídico é igual, mutua e universal, ou seja, em realidade seria uma regra geral para todos.

Kant como leitor de Rousseau absorveu alguns de seus conceitos, em que para ele, o homem deverá sair do seu estado natural em que age somente com o objetivo de sua satisfação pessoal de acordo com seus próprios caprichos e então convencionar com todos os demais em submeter-se a uma legislação exterior, publicamente acordada. E desta forma, os seres racionais e civis integrante de uma sociedade estarão limitados a uma lei que estabelecerá padrões a serem respeitadas para que o direito de um não prejudique o direito de outro. Neste sentido ressalta Kant (2003.p.77):

Se, então, minha condição pode geralmente coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, todo aquele que obstaculizar minha ação ou minha condição me produz injustiça, pois este obstáculo não pode coexistir como uma liberdade de acordo com uma lei universal.

Assim, somente ações externas, com conseqüências externas, são relevantes, quando se trata simplesmente de estabelecer um princípio universal da coexistência dos arbítrios. É obvio que o direito é um conjunto de normas e diretrizes que garantirão o direito à liberdade até certo ponto, e os deveres de todos que tem de ser seguidos, para que assim os indivíduos na condição de pertencentes a um Estado Civil vivam em ordem em suas determinadas comunidades ou sociedades, onde a liberdade de um não interfira na do outro.

Não obstante Joaquim Salgado (1995. P.207) analisando o direito em Kant faz a seguinte ressalva:

Interessa a Kant conceituar mais de perto o direito que aparece na sociedade civil. O direito, ao passar para a sociedade civil, aparece com a forma de um direito guarnecido de coação.

Logo, as normas estabelecidas pelo direito coagem os indivíduos a obedecê-las para que a ordem seja mantida, não são atos morais subjetivos que são exigidos, mas tão somente que a lei seja obedecida independente do sentimento interno do individuo. Pois, a legislação jurídica exige o cumprimento dos deveres somente por intermédio da coação e não por respeito à lei, mas somente conforme ao dever. Desde que “minha” ação seja justa, quer dizer, tal que permite a coexistência de meu arbítrio com o arbítrio de todos os outros, não impedindo, assim, o livre exercício dos demais arbítrios, “estou” plenamente autorizado pela lei jurídica a realizá-la. Noutras palavras, a lei do direito somente quer que os indivíduos ajam conforme ela exige, logo, há sim uma coação que é externa. Assim, nas palavras de Kant (2003. P.78).

“Pode-se localizar o conceito de direito diretamente na possibilidade de vincular coerção recíproca universal com a liberdade de todos, isto é tal como o direito geralmente tem como seu objeto somente o que é externo nas ações, o direito estrito, a sabe aquele que não está combinado com nada ético.

Isto, pois, se da pelo fato de o direito (legalidade) não levar em conta os princípios subjetivos que estimulam o agente (indivíduo) a praticar determinada ação que viole a lei. O direito como já aludido é coercitivo, pois a coação é a nota característica deste sendo que em toda a estrutura do direito a coação está inerente, permeando assim toda a ação humana que se projeta para o externo.

Convém ressaltar, que por vezes os peritos e especialistas neste ramo para avaliar determinado caso e determinadas ações praticadas por certos indivíduos, os quais estão passando por algum julgamento jurídico, investigam todas as possibilidades e fatores que levara uma pessoa a praticar tal ato que transgredira a lei (direito). Neste sentido, o direito não cuida tão somente daquilo que se exterioriza, mas também leva em conta o mundo da intenção.

Por outro lado se é certo que o direito só aprecia a ação enquanto projetada no plano social, não é menos certo que o jurista deve apreciar o mundo das intenções. O Foro intima é de suma importância na ciência jurídica (REALE. 1983.p.28).

Porém, no que se refere ao conceito kantiano de moral que é autocoercitivo internamente (subjetivamente) e não determinado por móbil externo algum fica claro que o direito neste sentido não está combinado com nada ético, no sentido que Kant propõe. Então, o direito “[...] não exige senão fundamentos externos de determinação do arbítrio”. (LEITE. 2007.p.99) Neste viés, os deveres na legislação jurídica inegavelmente são externos, posto que a mesma somente exija ações que possam estar em conexão com a lei.

O direito diferencia-se não por apresentar uma legislação de caráter diferente sendo heterônomo, mas simplesmente por admitir a possibilidade de um móbil diferente do respeito pela lei. Em todo caso, a coação “moral” externa é definida em termos de ameaça de violência física, tratando-se da autorização para a extorsão de uma determinação do arbítrio alheio.

Assim, os indivíduos em sociedade que é regada por leis jurídicas estão somente na obrigação de cumpri-las, ao passo que, uma vez haja transgressão dos mesmos ferir-se-á o direito de outrem e, conseqüentemente trará danos e incômodos a sociedade “organizada” juridicamente.

A conseqüência disso é que o direito só ocorre entre seres humanos, visto que entre seres livres, mas também do ponto de vista de seres que possam limitar seus arbítrios, isto é, não entre seres que não possam ter direitos e deveres. (SALGADO. 1995.p.245)

Em outros termos, todo ser racional possui a faculdade moral plena de realizar uma ação justa, ou seja, todos têm o direito de realizá-la ou de determinar o seu arbítrio no sentido de sua realização no mundo externo. A ação é injusta por derivação aquela que impede a realização de uma ação justa, quer dizer, aquela que impede o livre exercício do arbítrio alheio constituindo, por conseguinte, um obstáculo à coexistência universal dos arbítrios livres. Se uma ação injusta impede o arbítrio no exercício de sua liberdade segundo o princípio da universalidade, então impedir a ação injusta pode ser considerado uma ação justa, de certa maneira complementar (e eventualmente necessária) à ação justa pretendida inicialmente pelo arbítrio. Sendo assim, a coação pode ser justa precisamente na medida em que visa impedir uma ação injusta, quer dizer, impedi-la por exatamente impedir o livre exercício do arbítrio alheio. Ora, tudo o que é injusto é um impedimento da liberdade segundo leis universais, a coação, no entanto, é um impedimento ou resistência sofrida pela liberdade. Posto desta forma, então Kant ressalta que o direito também “é um conceito racional puro, prático da escolha sob leis da liberdade”. (KANT. 2003.p.95) É exatamente por isto que se constatam inúmeros casos de ações tomadas pela segurança Pública para com os indivíduos de uma determinada sociedade por meio a ameaças e violência, para que determinados transgressores não transgridam as leis existentes, sendo que isto é: a: “existência da teoria da coatividade do direito, em que as normas são feitas valer por meio da força”. (BOBBIO. 1995.p.28).

Neste sentido, toda esta normatividade de leis e penas causa certo “receio” nos seres sociais, sendo que através da coação não agirão de maneira negligente perante a lei.

São inúmeros e claros os casos e exemplos existentes que podem elucidar este assunto de uma forma mais ampla, pois através de jornais e noticiários televisionados, ficam expostos fatos onde pessoas descumpridoras das leis feriram o principio do direito. Neste sentido, muitas vezes a sociedade fica perplexa e revoltada com crimes e barbáries cometidas por “meliantes” inconseqüentes que tão somente descumpriram cabalmente as leis, feriram o direito e a liberdade e os sentimentos dos demais. Nisto, percebe-se que a legislação jurídica não é a que prescreve deveres com relação aos outros, mas aquela por cujo cumprimento se tem responsabilidade perante a coletividade.

Portanto, pode-se elucidar o que já fora afirmado através de exemplos práticos, reais e conhecidos que ocorreram não noutro continente, mas no próprio Brasil, como por exemplo, ocorrido no Estado do Maranhão na faixa de 1999/2000 o caso Francisco das Chagas que aliciou 42 menores, causando constrangimento nestas crianças e também a morte de algumas delas após o ato libidinoso. Isto de fato, moralmente falando, ele considerou os menores (seres humanos) como simples meio e não como fim em si mesmos. Este assassino para satisfazer um fim, isto é, um desejo e um vício seu ele cometeu esta barbárie com a vida de outrem. Tendo em vista este exemplo, o direito não exige esta auto-coerção moral, mas que o dever e a lei sejam cumpridos, ainda que contra a vontade do indivíduo, este indivíduo poderia tão somente andar conforme a lei respeitando a vida e a liberdade dos demais. Todavia com estes 42 casos ocorridos, todas as vítimas e a sociedade como um todo, foi afetada pelo fato de um indivíduo não respeitar o arbítrio, e permear na liberdade dos demais.

Além disto, é perceptível também que inúmeras pessoas tão somente cumprem a lei e andam conforme ela por medo de suas penas, o que se subentende que estas são ações hipotéticas, pois não agem por dever, mas através do receio. Assim, tem-se o exemplo existente no Código Penal Brasileiro que segundo o artigo 155 diz que furto é: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena-reclusão, de uma a quatro anos e multa”.(ANGLER. 2004. P. 869) Nesta linha de raciocínio, percebe-se que para a Juridicidade o importante é que a ação prescrita seja cumprida ainda que por mero interesse pessoal ou fim visado, pois a lei tem de ser cumprida não por dever (auspflicht), mas somente conforme ao dever (pflichtmässig) o que é totalmente distinto. Isto ocorre exatamente quando alguém deixa de furtar algo por causa das conseqüências que possam advir, isto é, por temor a uma pena e por medo também do descrédito perante os demais. Sendo isto para o direito uma ação válida.

Parece óbvio que um ser pensante e racional não irá furtar coisa ou bem algum que seja alheio, pois assim fazendo estará correndo o risco de ser penalizado pela lei que já estabelecera padrões a serem obedecidos. E então ser enquadrado no Código Penal Brasileiro 155 e recluso de maneira constrangedora perante o público da sociedade por tal ato cometido, onde certamente sua honra será abalada. Não obstante, há outro crime que é passível de pena, este se denomina de roubo que segundo o artigo 157 do Código Penal é:

Subtrair coisa imóvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência (ANGLER. 2004. P. 869).

Ao ocorrer esta eventualidade com alguém, sendo que o agente da ação ao ser capturado, ou preso cumprirá “Pena- reclusão, de quatro a dez anos e multa” (ANGLER. 2004. P. 870).

Logicamente que há também dentro desta infração, os agravantes que poderão aumentar em um terço a pena do infrator o que logicamente será exercido pela justiça existente, no caso, a brasileira. Esta pena e somente a sua existência na forma teórico-legislativa provoca também medo e receio naquele que deseja praticar tal ato, pois, sua liberdade então será restringida caso a justiça venha a evidenciar-se em sua vida após “cometer” tal infração, e ferir a ordem social e afrontar o princípio do direito.

Esta dita infração (roubo) em realidade afeta e fere a liberdade de outrem, e o seu direito de posse á determinado objeto, sendo que o próprio Kant dá um exemplo de um suposto ocorrido desta natureza:

[...] alguém que a afete sem meu consentimento (por exemplo, arrebata uma maçã de minha mão) afeta e diminui o que é internamente meu (minha liberdade),de sorte que sua máxima está em direta contradição com o axioma do direito.(KANT.2003.p.96)

Não obstante, o dever no âmbito jurídico é um dever para com o outro, uma relação de respeito e conformidade a lei, pois o dever jurídico então expresso é externo e não leva em conta o que motivará uma ação ocorrer.

No direito, se a conformidade com a lei (cumprimento) se fez por temor da sanção, por receio a um castigo religioso, ou descrédito social, etc. Em nada interessa isso ao direito, que se dá por satisfeito por ter sido sua lei observada. (SALGADO. 1995.p.257)

Assim ocorre no direito, pois a ação deve assim se exteriorizar, ou seja, confrontar-se com o arbítrio do outro, pois a ação só torna-se relevante para o direito quando se exterioriza. Logo, ela (a ação) deve se deparar com a liberdade do outro. E exatamente desta forma há diversas sociedades organizadas conforme a justiça, onde nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais

É conveniente lembrar a existência de subtemas que dentro da linha do direito são constantemente estudados e analisados, temas estes que embora “diferentes” estão incluídos neste estudo acerca do direito. Seria, o direito privado, que está ligado ao estado natural, e o direito público que é conhecido também como direito positivo ou condição civil.