Transitando

29 anos. 348 meses. 1508 semanas. 10585 dias. Isso sem contar os anos bissextos que aumentariam esses números, reforçando a ideia de total inutilidade e um vazio incapaz de ser preenchido. Imaginava que prestes a completar trinta anos - como pesa dizer isso - todos os meus problemas teriam sido resolvidos, interna e externamente. Sentia que tinha tempo. Quando jovens, temos a falsa impressão de que tudo vai se ajeitar, a velhice é aquele parente distante e meio inconveniente, que sempre chega, não adianta sofrer por antecedência. É surreal pensar que o que me apresenta não me representa, pelo contrário, me condena a adotar uma postura, uma agressão ao meu verdadeiro eu. Quando criança não achava estranho viver entre as meninas, era onde me sentia viva, livre e honesta. Podia passar horas acreditando que não havia diferenças entre nós, até que alguém gritasse o meu nome, me chamasse de "veadinho", "bicha" ou qualquer coisa do tipo, ou mesmo uma porta de vidro que não deveria estar ali refletisse a imagem que não queria ver. Aliás, sempre fugi de espelhos, vitrines e carros estacionados. Preferia ser como um vampiro, sem reflexo, viver a minha realidade e me ver do meu jeito. Uma hora você entende que há muito mais coisa envolvida e os papéis de menino e menina começam a ser definidos. Onde eu me enquadro? Não sou menino! Eu só tenho um órgão genital que em nada me identifica. Não queria carrinhos, futebol, brincar de luta e ser um moleque, queria amigas, bonecas, brincar de casinha e ser uma princesa. À noite pedia a DEUS que milagrosamente me transformasse numa garota e ao acordar, era grande a expectativa em conferir se fui atendida, só não maior que a decepção ao perceber que não. Tantos pedidos e frustrações, em meio a olhares de descontentamento por parte da família, todos tentando corrigir aquele "menino delicado" para que não "virasse gay". O mundo não fazia mais sentido e eu bem menos, me fechei para tudo que poderia abrir a mente e me esclarecer. Passei a viver, ou sobreviver, como podia, escondendo-me das visitas, falando pouco, evitando ser notada, fazendo o possível para ficar invisível aos olhos de quem enxergaria o garoto que aparentava ser. Só era feliz sozinha, trancada no quarto, quando não me via. E até hoje é assim, só conheço a felicidade imaginando.