Sobre a existência humana - Parte I

Ponto de partida: coração

Inspiração: "O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não." (Mahatma Gandhi)

Lembrete: "Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo." (Hobbes)

Meu maior inimigo: o medo.

Há anos que o carrego ao meu lado como uma sombra, uma sombra bem disfarçada de consciência, de prudência, de cuidado. Acho, na verdade, que desde muito pequena o conheci de maneira assustadora, pois ele se aproximou sorrateiramente, sem alarde algum, se deitando ao meu lado e me abraçando de noite sem que eu sequer pudesse apontá-lo. Ainda que estivesse nu, ele é invisível.

Acho que quando ele se deitou ao meu lado, eu notei. Ao menos, senti. Pois um dia, ainda muito pequena, lembro que acordei no meio da madrugada e me levantei da cama assustada. Pra ser sincera, minha memória não é tão boa assim, mas assim relatam meus pais. A única coisa que lembro é uma imagem congelada: eu, sentada no degrau de saída do meu quarto, me abraçando com os olhos vidrados olhando pro nada, tremendo como uma vara verde, e isso é tudo. Acho que era pura sensação. Acho que era a prova clara de que o medo havia chegado. E pra ficar.

Acho que o mais assustador nessa imagem congelada em minha memória, é que nunca tinha conseguido dar "um título" à ela. Nunca havia encontrado razão alguma, nenhuma explicação para esse momento atordoante, mas agora tenho. E,de certa forma, é um estranho alívio. O desconhecido sempre foi o que me aterrorizou com mais credibilidade.

Mas o pior de tudo, é que com o passar do tempo, um pequeno medo se multiplicou e se transformou em vários. De repente, já não era apenas um. De repente, a balança estava injusta. Era eu sozinha, contra todos os medos. E eram vários, pode ter certeza!

A minha vida foi seguindo, e o medo a seguindo também, como uma tiete incansável. E até que me familiarizei com eles, e até que os conheci um pouco, e até achei que fossem meus amigos. Tomamos um gole ou outro juntos, refletimos sobre as possibilidades da vida, rimos na cara da sociedade.

Eu já devia saber que não dá pra sair confiando assim em qualquer sombra que aparece pelo caminho. E acontece que ressaca nunca foi brindada com boas vindas, certo?

Acontece também que logo notei: meu "amigo" medo e os goles que viramos juntos só me levaram a más decisões, uma atrás da outra. E logo não hesitei em botar a culpa nele sem pensar duas vezes. O que é muito irônico, afinal, ninguém teve a maior capacidade de me fazer pensar tanto quanto ele teve. Sempre um bom amigo para refletir sobre as coisas da vida.

Era de se pensar que quando apontei o dedo e bati o pé sobre sua infinita maldade, ele iria para bem longe, derrotado, ou até mesmo ofendido. Mas é claro que ele não fez isso! Como todo bom amigo, ele me abraçou. E ainda disse que sempre estaria comigo, não importa o quanto eu tentasse afastá-lo. Mas o meu erro, admito, foi que o abracei de volta.

E quando o abracei, tudo fez sentido. Ele fez sentido, eu e minhas más decisões fizeram sentido, nossa eterna amizade fez sentido, e não precisei mais me preocupar. Você deve me entender, é sempre bom ter alguém pra culpar quando a coisa fica realmente feia.

O medo continuou comigo, é claro. E estava sempre me brecando e tentando impedir que eu fizesse alguns erros inconsequentes diante das tonteiras da vida. E eu permaneci lhe sendo muito grata, grata ao meu mais íntimo amigo. Sentia que ninguém me conhecia tanto quanto ele, o que é verdade.

Cheguei a pensar que fomos feitos um pro outro. Talvez ele fosse minha alma gêmea, talvez eu nunca mais devesse deixá-lo ir. Eu estava quase convicta disso, mas aí ele riu na minha cara.

Riu. Na minha. Cara. Dá pra acreditar?

Sem grandes explicações, porque ele não é muito de falar. Ele só fica me olhando com aquela cara de paisagem como se fosse uma ameba, sem expressão facial alguma, deixando que eu fizesse todo o trabalho sujo e desse todas as explicações. E assim, sem mais nem menos, ele ri da minha cara.

Me revoltei, dei-lhe na cara, virei as costas. Ele era, novamente, meu maior inimigo. Mas dessa vez ele não veio atrás de mim. Eu esperei, juro que pensei que ele voltaria e logo me abraçaria e me diria que não me deixaria ir, mas nunca aconteceu. Ele simplesmente ficou lá, quietinho, esperando que eu rastejasse de volta.

Eu decidi fazer o contrário. Eu decidi me afastar dele o máximo possível, eu decidi ser do contra. Eu decidi que já que ele era meu novo inimigo, ele deveria ser destruído, e foi o que tentei fazer. Aos primeiros sinais da dor dele, notei que a dor maior era em mim.

Conforme a marreta trabalhava incessantemente em meus braços cansados e uma estranha sensação de liberdade e realização se apossava de mim, eu também sentia certa náusea e vertigem, certa sensação de que nada me segurava, ele não poderia mais segurar minha mão. Ainda assim, o deixei ir.

E meus dias foram instáveis e inquietos. Foram cheios de liberdade e libertinagem. Foram errantes, imprecisos, mas também foram pesados, foram densos, foram caóticos, como uma casa fora de ordem. Eu me perdi. E quando me perdi, pensei que não houvesse mais o que fazer. Uma sensação aterrorizante se apossou de mim, me abraçou bem devagarzinho, mas logo me prendia com força. Era o medo. Ele voltava pra mim.

Recebi sua volta com vivas de alegria. Parecia retornar finalmente uma parte de mim que me faltava. O acolhi, o recebi em meus braços tentando incorporá-lo no fundo do meu ser. Ele se afastou. Dois, três passos de distância, se sentou, e ali ficou. E quando olhei em seus olhos, eu entendi.

Ele era meu, mas não era como eu. Não deveria se tornar parte de quem sou, embora inevitavelmente devesse fazer parte da minha vida.

Como meu melhor amigo. Como meu maior inimigo.

Tão inevitável, tão desejável, tão querido, mas tão repulsivo em suas maneiras grosseiras e sua cara de paisagem de ameba que me faz criar explicações mirabolantes que só eu refutarei ou acolherei com a mesma intensidade.

Mas agora entendi. Agora sei que ele estará sempre perto de mim, tão perto que às vezes chega a quase sufocar. Podendo, com uma mão me segurar, enquanto com a outra me empurrar com a mesma facilidade quando estou de frente ao precipício. Mas ele não age. Ele não fala. Ele não força.

Não o acolho, nem o abomino. Apenas escuto o silêncio que emana de seus lábios. Observo o brilho decisivo em seu olhar. Sorrio. E sigo em frente. E sei que jamais estarei sozinha.