Democracia e inconsistências
Um país que desrespeita por completo os princípios republicanos, como é o caso do Brasil, engendra a cada dia, a cada década, uma nova forma de esperança sem solo: de que um país melhor nascerá! No entanto, sem combater os interesses oligárquicos e mesquinhos das nossas classes/grupos dirigentes, sejam eles econômicos ou políticos, em conluios ou não.
Falou Cícero(106 a.C. - 43 a.C.), grande orador romano do período republicano, que “o bem público é o bem do povo”, ou seja, o bem público, que diz respeito ao bem estar de todos, sem privilegiar quaisquer interesses de particulares, está acima dos deveres ou interesses privados.
Como nos dirá Fábio Konder Comparato: “Na república romana, o serviço do povo sempre passava à frente de todos os deveres ou interesses privados...”. Logicamente, um olhar atento para a nossa república moderna, legatária da romana, em nada, nesse quesito, se assemelha ao princípio republicano da antiguidade.
Os interesses de grupos particulares (econômicos, políticos, religiosos) que procuram tirar vantagens da frágil democracia brasileira sobrepõem-se sobre os interesses da grande maioria dos cidadãos e cidadãs brasileiros (se é que se pode falar em cidadania nesse país). Não fomentam debates e discussões sobre nenhuma proposta que afeta diretamente a vida de milhares de pessoas. Decidem à revelia do entendimento do povo.
Comparato nos diz que em “Roma, a função pública denominava-se honor, e era de fato considerada como o honroso encargo de servir o povo; jamais como objeto de dominação individual ou familiar, menos ainda como fonte de enriquecimento”.
Como disse Cícero, que fora nomeado questor, “estimei que esse cargo me havia sido, não dado, mas confiado”.
Confiam os eleitores em seus elegidos para representarem o bem público com honestidade? E os elegidos entram na política para zelar o bem público? Consideram-se representantes do poder que o povo lhes concede por tempo determinado ou simplesmente consideram-se donos do poder?
Embora, constitucionalmente, estejamos sob a égide de um governo republicano, presidencialista, com eleições periódicas, sufrágio universal, democrático representativo, de igualdade de todos perante a lei, dificilmente nossas instituições políticas representam a vontade da maioria, num complexo jogo de relações que envolvem desde tráfico de influências a tergiversação dos interesses públicos, malversação do dinheiro público a prevaricação, clientelismo, cooptação, a instransparência entre o privado e o público, a utilização do aparelho estatal para favorecer interesses particulares, familiares, de “amigos”, etc; Uma gama de atitudes em que nada se coaduna com a nossa Constituição Federal de 1988. Aliás, se a nossa constituição fosse cumprida à risca, já seria, poderíamos dizer, uma grande revolução, pelo menos nos artigos que condizem com a dignidade do cidadão e da cidadã brasileiros.
República, democracia, mera formalidade, pois substancialmente vivemos outras (in) consistências, tais como uma plutocracia, oligarquia, ditadura social e econômica (pelo menos para os pobres). Os precarizados sofrem, lutam, tentam sobreviver. Podemos dizer que esse país é uma democracia para os ricos, que esse país funciona para uma pequena minoria, que esse país dá certo para quem dele se utiliza em proveito de interesses nababescos: banqueiros, investidores, grandes fortunas.
Mais do que nunca, para esse país ser uma democracia de fato, uma república de fato, temos que começar pelas exigências que vêm das ruas, do povo: movimentos dos trabalhadores sem-teto, movimentos dos trabalhadores sem-terra, movimento dos atingidos por barragens, das greves dos trabalhadores, entre tantos outros, e questões ligadas à saúde, educação, homoafetividade, violência(s), etc.
É a partir daí que nossas instituições politicas, nossa malfadada democracia, a nossa república, enfim, pode começar a se reformar. É a partir daí que esse país pode, de fato, ter alguma chance de ser um país democrático.