Médico de Trincheira
Eu não sou nada, ninguém, nem deveria ter nome...
Eu não salvo vidas, tapo buracos deixados na alma...
a guerra a tudo leva, tudo leva e pequenos olhos ainda inocentes descobrem o lado da dor muito mais cedo...
Eu sou culpado, eu não deveria estar aqui, moro longe o sangue corre, tenho que estancar, é meu dever, mais do que isso é para isso que vivo...
Muitos passaram por minhas mãos, alguns retornam, dizem que fui mandado por Deus..
Deus...
Olha por mim, por suas crianças...
Me pergunto para que me mandou aqui, neste lugar onde nada posso fazer?
um recipiente sem água a um lugar de sedentos?...
Deus, porque me enviou aqui?...
Eu sou apenas um, os pacientes são tantos, as chances tão poucas, tão poucos recursos?...
Porque Deus?...
Porque não simplesmente para a guerra?
Porque não aplaca a fúria no coração dos homens?...
No final de tudo criador...
O que restará aqui?...
Eu não sou nada nem ninguém, minhas roupas brancas estão sujas de sangue, de ferimentos que não abri, de ferimentos que não posso fechar...
Os que consigo são tão superficiais que fecham apenas a pele, mas a alma ainda esta morrendo...
Senhor, porque me deu a capacidade de colar ossos se não posso concertar a paz?...
Porque me deu a capacidade de remover estilhaços de bombas, mas não consigo preencher o buraco da indiferença, da falta de amor?...
Me explique senhor...
Porque tantos morrem nestas trincheiras, sem merecer tão cruel destino?...
Posso sentir os sonhos roubados da criança retirada dos escombros no meio da noite, enquanto ainda sonhava...
Posso ver o desespero daqueles que são inocentes que estão tentando apenas viver e aqui estão...
Inferno senhor?...
Eu ainda não estou totalmente certo sobre onde é, ou como é...
Mas se neste lugar dito em livros há dor, sofrimento, talvez ele esteja por toda a parte, e se alguns forem para lá, talvez não notem a diferença...
Perdoa-me a fúria na alma, ainda sinto a dor dos outros, consigo anestesiá-los, mas meu coração continua doendo...
Alguns por minhas mãos estão respirando ainda, mas eu ainda sangro...
Deus, a dor em mim parece muito forte e ainda não sei por que aqui estou...
Mas sei costurar pele, consigo religar ossos é tudo que sei fazer, é tudo que posso fazer...
Sinto que o que faço aqui é inútil, como gota d'água no incêndio das chamas da guerra, que se alimentam dos gritos desesperados das almas inocentes tragadas, mutiladas que não podem proteger-se do ódio que nunca mereceram...
Deus, perdoa-me sou a esperança de tantos, mas não tenho esperança, outra bomba acaba de ser lançada, em breve mais mutilados virão aqui, sei que não posso salvar todos, sei que o que faço parece pouco...
Mas é tudo que sei fazer, é meu dever...
Como um peixe nada ou uma ave voa...
Sei costurar pele, sei religar ossos...
Como um pequeno pássaro levo pequenas gotas de esperança ao incêndio nas almas queimadas pelas chamas da guerra,
um incêndio que não posso apagar, uma sede de vingança que nem mesmo o sangue de todos aqui poderá aplacar...
Perdoa-me Deus, não sei rezar bonito, a luz apagou outra vez, não sei se poderei ver a luz do dia, não sei se amanha estarei aqui para costurar o que foi rasgado ou quebrado...
O medo toma meu coração, mas sei que preciso estar aqui, mesmo com o risco de ser eu o que espera atendimento numa maca, eu que tantas vezes o fiz, talvez precise de ajuda...
Mas é tudo que sei fazer, preciso estar aqui, minha doença só estes doentes podem tratar...
O buraco da falta de esperança que tenho só pode ser preenchido com os ferimentos que fecho, recuperar a respiração daqueles que nunca vi, é o que me mantém vivo...
Estou doente senhor, sou um médico doente...
Que talvez só estes pacientes sirvam de remédio, que talvez só eles possam aplacar minha dor, ser minha cura então aqui estou...