O MAL DE SER BONZINHO..

Se fecho os olhos consigo rever o prédio onde minha mãe me levou dizendo que lá eu aprenderia a ser alguém .

Assim surgiram minhas primeiras dúvidas: se lá eu seria alguém, então eu era ninguém? As pessoas para ser gente precisam ir a um lugar onde aprendem a escrever? As letras escritas num papel é o que nos tornam humanos?

Estranhei logo de começo esta ideia de diferenciar as pessoas entre analfabetos e letrados.

Para mim alguém era minha mãe que apesar de não escrever nada além do próprio nome, tinha a cura para todas as minhas dores. Bastava um sopro ou um beijo e qualquer dor parava imediatamente.

Acreditava que gente era meu avô, que dizia que a melhor escola era uma enxada, um trabalho, a honrar a palavra dada, respeitar os mais velhos e ajudar os mais fracos.

O mais estranho foi descobrir que aquele espaço onde as pessoas aprendem a ser alguém foi para mim um lugar de limitações, mas também me descobri como ser humano.

Primeiro vi as limitações. Descobri que era pobre , e que as crianças pobres ficam sempre lá no fundo, esquecidas. Lembro de uma professora que disse em voz alta na frente da turma que eu deveria me vestir com roupas melhores.

Logo descobri que minha vida era pública, que o homem que eu achava que era meu pai, na verdade era meu padrasto, e que ele era o bêbado da cidade.

Na escola descobri que tinha a língua presa, mas não me diziam isto, apenas me chamavam de gago. As crianças colocaram o apelido e os professores simplesmente reforçavam. Uma vez no pátio ouvi uma professora dizer meu nome e a outra perguntou: " que Maicon?" E ela respondeu quase rindo: " Maicon, o gago".

Assim eu decidi ficar calado, e como calado me tornei o aluno bonzinho e como bonzinho descobri que poderia passar de ano, mesmo sem saber ler ou escrever. Este era meu truque. Eu ficava quieto e as professoras me passavam. Todo final de ano era assim: "Maicon". " O Maicon é bonzinho coitadinho. " " Vamos passar ele."

Mas um belo dia minha mãe foi chamada na diretoria e disseram que era melhor me colocar na APPAE, pois eu não aprendia.

Minha mãe virou uma leoa, disse que eu não era "doente", eu precisava de apoio.

A diretora acabou aceitando a ideia da minha mãe, mas acho que foi muito mais por medo de um barraco do que acreditar que eu era capaz

Foi assim que conheci a professora Liége . Ela me dava aulas de reforço na biblioteca. Me ensinou as letras, as palavras e acabei aprendendo a escrever e a ler.

Ela foi maravilhosa, não era boazinha, pelo contrário, era forte . Me deu vários livros e sempre fazia perguntas sobre as leituras.

Não me abraçava, não me beijava, mas eu sentia o calor de sua alma, o cheiro de seu amor pelo estudo , com ela aprendi que viver é para os fortes e que devemos vencer cada dia de uma vez.

Hoje revendo a vida vejo que ser professor não é ensinar uma criança a ser alguém, mas mostrar que ela pode ser quem ela quiser quando descobre a importância de ler e escrever.

Hoje agradeço por ser quem sou e por estar fazendo algo que gosto, ensinando outras crianças a serem quem elas quiserem ...

O cozinheirodealmas
Enviado por O cozinheirodealmas em 20/06/2015
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T5283929
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