Religiosidade sem religião
É chocante para mim perceber o enorme número de pessoas de boa índole, que por ingenuidade, romantismo, ignorância, medo (mesmo pavor e terror, vendo pela minha própria mãe), em pleno século 21, virado o segundo milênio, em pleno 2015, que ainda acreditam (cegamente a maioria) que são as religiões, ou melhor que é a sua religião(pois que só ela é a verdadeira), a guardiã e defensora, a proprietária, sendo ela a “verdadeira” origem, e com capacidade e propriedade para prover e disseminar sentimentos de amor, humildade, moral, e dignidade. É incrível como pessoas de bem se sujeitam naturalmente a este tipo de catequese, e pautam suas relações com o mundo real baseado em preconceitos e doutrinações religiosas. Estas pessoas foram doutrinadas de tal forma que são incapazes de perceber a diferença entre religião e religiosidade. Os que me acompanham sabem que sou francamente contrário as religiões, a todas elas, mas que sou francamente aberto ao sentido e ao sentimento de religiosidade que habita em cada um de nós. Mesmo a maioria de ateus já sentiram em algum momento este sentido de religiosidade, entendo que ele é nato, que a evolução de alguma forma selecionou este sentimento como benéfico para a sobrevivência ao longo de nossa caminhada evolutiva. Tenho que tentar entender que este sentido, ao longo de nossa jornada de milhões de anos, ajudou a que deixássemos mais descendentes, talvez pelo seu sentido de grupo, de coesão, de dedicação coletiva. Devemos ter em mente que vivíamos em pleno desenvolvimento de nosso cérebro, e a realidade geológica e natural parecia realmente sem explicação, deveria parecer algo sobrenatural. Pensemos, fogo (devemos ter em mente que o fogo só veio a ser “dominado” bem mais recentemente, e que até alguns séculos atrás ainda haviam pessoas tentando “pegar ou capturar” o fogo) , raios, som do trovão, terremotos, temporais, vendavais, falta de agua, vulcões, ondas no mar, tsunamis, enchentes, rios que secam ou que sofrem enchentes, doenças, medo, nuvens, arvores que caiam aparentemente do nada, o crescimento de uma planta, ou o simples nascimento de uma criança, eclipses, meteoros, cometas, alem do próprio sol, da lua e das estrelas, entre outros inúmeros “mistérios” que assolavam a mente de um animal que começava a ter inteligência, sem a contrapartida de algum conhecimento, ou alguma ciência, já que ciência e igual a conhecimento. Neste contexto, talvez, penso eu, o sentido de coletividade propiciou que tenhamos conseguido garantir mais descendentes, e que talvez este sentido de coletividade (mesmo em grupos pequenos) era ele próprio a semente da religiosidade por medo do desconhecido, ou então ele aliado a outro sentido de religiosidade ganhou mais corpo e força, ou mesmo que o sentido de coletividade veio a dar origem, por derivação, ou por efeito colateral, ao sentido de religiosidade. Agora o sentimento sincero de religiosidade não pode ser entendido como necessidade de pertencer a alguma religião, ou mesmo que o sentido de religiosidade, que entendo natural, seja ele verdadeiro em si mesmo. Entendo a religiosidade, e isso eleva meu respeito e carinho para os que nele mergulham, por isso respeito os religiosos, entretanto, que fique claro, meu respeito pela religiosidade em algo transcendental, em momento algum pode significar que creio ela como verdadeira. Eu mesmo, durante uma parte de minha vida, acreditei neste sentimento como verdadeiro, não no sentido do próprio sentimento em si, que é ele verdadeiro, mas que ele representava uma verdade, já que eu sentia, de que deveria realmente existir algo superior e transcendental, mas aos poucos fui percebendo que o fato de sentir algo, não é prova “evidencial” de que o que sentia fosse, ou representasse, verdade. Apenas como exemplo vulgar, sem me aprofundar, sentia medo de escuro (até que racionalizei que não fazia sentido). E assim passei a olhar e a sentir a espiritualidade humana, a religiosidade, como “coisas” naturais, imanentes, e a religiosidade e a espiritualidade passaram a ser sentidos naturais que visavam apenas a me mostrar que sou humano e que tenho coisas boas que podem ser construídas, reformadas ou aprimoradas em mim, somente em mim, e por mim mesmo.
Mesmo enquanto religioso tinha sérias restrições as religiões, aos seus dogmas, as suas mentiras, ao seu comportamento no mínimo conflituoso entre um ideal de bem e uma prática de mentiras e interesses. Isso me levou a uma fase conflituosa comigo mesmo, pois que me faltava o estalo criativo de que a religião não é em si mesma detentora de nenhuma propriedade sobre o bem e a justiça, que podia ser religioso sem religião, e isto foi a retirada de um peso enorme, me via livre das amarras, das mentiras, da catequese, do céu e do inferno, da possibilidade de excomunhão como algo perverso a dignidade, e me vi livre de toda necessidade de salvação, podia agora ser religioso, praticar o bem, amar um deus (que depois também vi desnecessário e aí acabou o encanto da religiosidade para mim), sem obrigações incoerentes que as religiões impunham.
Hoje sou ateu, consciente e inconsciente, não por raiva, frustração, ou por não ter algum desejo atendido, simplesmente sou ateu porque é assim que leio a realidade da existência, natural, imanente, e livre de tudo e qualquer coisa transcendental. Porque será que pessoas se sujeitam a entregarem suas mentes e seus corações as religiões, quando podiam, mesmo que sem sentido para mim, realizarem suas religiosidades livre do peso e das incoerências das religiões.
Religiosidade sem religião, é possível, é mais honesto, é mais natural, apesar de que hoje entendo a religiosidade como um sentido natural, mas sem reflexo de verdade com a existência.
Espiritualidade sem religião, é possível, totalmente possível, principalmente se retirarmos do termo espiritualidade qualquer referência ou sentido transcendental, e darmos a ele apenas um sentido de encontro consigo mesmo, de crescimento humano e de dignificação da vida em sua essência, de toda vida, e por derivação da vida humana e social.
Sou imperfeito, tenho a mente cheia de bugs, e daí? Isso somente aumenta minha crença na naturalidade da evolução, sem desígnios, sem projeto, sem destino, sem tutor. Somos o que deu certo, não o melhor, ou o que daria mais certo. Somos o resultado de um caminho evolutivo tortuoso, um caminho de uma possibilidade de infinitos outros caminhos possíveis, não somos garantia de perfeição, somos garantia de realidade e de adaptabilidade contínua, e não de melhorias contínuas. Não sou melhor ou mais evoluído do que qualquer outra espécie, nem mesmo de antecessores, sou adaptações selecionadas como mais adaptadas a cada evento temporal, geológico e geográfico, um caminho que deu certo, não o caminho mais certo, ou qualquer presunção de perfeição, por isso a religiosidade foi, para mim, uma das adaptações seletivas que de alguma forma nos ajudou neste caminhar, não porque era verdadeira ou melhor, mas por que era mais bem adaptada, em algum momento, a necessidade de garantir mais descendentes.