Canela
Trago, então, a terceira bala à boca, ainda de canela. Sua primogênita, porém, me foi tão rápida que não pude entender seu toque, seu estalar. Escorreu, doce, na língua e tardou ao cérebro seu gosto. Picante, docilmente picante. Assim são os meus dias. E a cada novo dia, um toque do anterior, mas não como antes, não mais.. seu gosto já escorreu, achei melhor assim. Pois bem, acabou, já esta terceira, finda. Porquanto, sinto seu estalar na minha boca, aquele, que eu havia citado, sim, sinto seu toque.. nada mais que isso. E, se for muito esperto, tenho então certeza que não me é certo apreciar o que antes já havia apreciado. Só me é interessante o novo, o agora. A canela, entretanto, não muda.. na sua forma material. Pois, à boca, não sinto mais que doce seco, pinicante, crocante, um gosto de açúcar quente, que adocica e queima ao mesmo tempo. Um pequeno gostinho de vida. Seus tons, porém, me lembram os solos, estes espaços, tão vazios! tão cheios! que neles se pode colocar tudo e não colocar nada: a natureza do seu ser simplesmente permite que seja o que bem entender, ou o que o homem quiser que seja. Talvez surja aí um embate que durará por séculos à frente de seu tempo, mas não mais que poucos anos, perante sua idade certa. E estes solos têm anos de anos, de anos, tão distintos, tão infinitos, que mesmo o homem fica pequeno ou até mesmo a pobre e doce: canela. Perante, acabou a terceira e última bala que tinha, tão docilmente, perambulado pela minha boca. Decretado: a canela acaba e a vida não. Assim, me sobra o tempo de procurar mais, mas mais o quê? Às vezes vida, às vezes canela. A bem da verdade, a canela não acabou, não, porque ainda é vista sua cor nos meus estímulos nervosos e sua queimadura no meu paladar. E, pensando alto, há mais canela no mundo que apenas na minha mão, claro, e não vai ser hoje o seu ultimar. Não para outras, apenas para mim. E nem estas palavras, tão curtas, tão pequenas.. que usadas bem, perfuram paredes e estalam, ao vento, grandes chicotes, que podem tanto incomodar como molgar. Claro, estas aqui não necessariamente estão sendo direcionadas para algo ou alguém em especial. Estas aqui são eu e minha vontade de fazer alguma coisa: pois, sem elas, me sobra todo o resto: que, no caso, não é muito. Talvez uma boa leitura, um bom livro, um bom chá. De preferência, camomila, por fazer, que é para me apaziguar. Não que eu esteja estressado, não é isso, mas para uma boa leitura sobra-me uma boa cabeça: com nada a se pensar. Sabe, me ocorre certas coisas às vezes que, para alguém como eu, desabafar nunca é desnecessário. Então tudo bem: sinto cheiro de canela. Isso, sim, isso mesmo.. ainda sinto cheiro de canela no ar. Esse aroma, doce, cortante, que sobe quando a canela queima, quando a canela se põe a trabalhar. E é quase como se a sentisse nos meus lábios novamente. É, quase.. Assim, me impressiona como é o ser humano, este tão desviado, tão descuidado. Tão deslocado da vida, mas, sem perceber, tão subjugador da própria, que não entende quão fervorosa está sua vontade do querer-poder novamente e ter controle sobre a realidade. E não é só isso, eles querem a vida novamente! sim, é uma interessante novidade! eles querem! sabe, eu sinto, eu vejo. Eles querem sim! Só que está tão camuflada que nem os diretores conseguem perceber. Está tudo cegado pela nota de um dólar. Pelo real. O euro. O dinheiro, o conforto, a salvação. E os clientes, então, estes nem imaginam, nem sequer pensam no acaso relato de vida que se encontra entre eles. É lindo os cinemas lotados! Essa fome que as pessoas têm me esfomeia também, me enlouquece, me alegre tão profundamente que nem é necessário, para mim, descrever – nem o sei, porquanto. Sabe, a canela é sentimento, sons, cheiro, gosto.. ela equilibra os nossos instintos, as nossas facetas. Faz o corpo trabalhar. Sabe, o corpo, tão lindo. Tão incrivelmente lindo. O corpo! Devemos tanto a este, que nele não se pode nem negar-lhe a carne, o sangue, os sentimentos, os desejos, todos cerrados em pele, em punhos de aço. E a alma, esta, que com a brisa se vai, tão lenta, tão perigosamente lenta, mas vai. E se for, deixar ir e ficar, mas ficar longe, distante. Tão quanto puder, quanto quiser e até necessário for. Que não me corte os desejos da carne novamente. De canela, sabe. Ela estrala e queima, e beija a queimadura com lábios de cor de açúcar.