Biathanatos II
Às vezes gostaria de ser capaz de enxergar a vida do mesmo modo que aqueles que não deixaram a Caverna de Platão o fazem: orientada única e exclusivamente para servir de mão de obra, trabalhando até a velhice e se preocupando somente com seus gastos diários e qualquer outro entretenimento frívolo que apeteça a um ou outro – pão e circo…!
Infelizmente, porém, deixei a Caverna; passei a acreditar em algo a mais, e que a vida é mais do que trabalhar, comer, beber, consumir. Decerto existe algo superior, algo muito mais bonito que só os merecedores podem contemplar – seja o Nirvana, o Satori ou qualquer outro nome que deem ao fenômeno. Presunçosamente quis ser um merecedor, mas quanto mais buscava, pouco saía do lugar, e cada vez mais me lamentava ante o fato de prosseguir confinado a um lugar tão hostil às minhas convicções e do qual sempre me senti tão destacado.
Poderia dizer que um de meus consolos é a Natureza, mas até ela se deforma ante meus olhos – ao fim do dia, seus encantos são sempre os mesmos. As flores têm apenas uma cor, os pássaros sabem uma única canção, e até o mais idílico quadro logo me traria um inexprimível tédio se nele me visualizo por muito tempo. Assim sendo, pensei em unir aos encantos da Natureza algo artificial, mutável, que a tornasse diferente – como um caleidoscópio de belezas. Ainda não pude formular um plano concreto a respeito de tal pensamento, mas uma de minhas intenções com meus trabalhos é fazer com que meus leitores consigam tolerar a existência, ao menos. Retornando a meus poemas, o “Alceste” e o “Kunstmärchen”, que como já mencionei no ensaio precedente possuem uma mensagem direta contra o suicídio, seus personagens magos têm o poder de transformar a Natureza e empregá-la a seu favor, e um ponto importante no enredo de ambos é os magos quererem passar o conhecimento de tais poderes a um discípulo – simbolizando exatamente a vontade de viver num mundo transfigurado.
Nos mais negros períodos de minha vida sempre encontrei algo ou alguém que me reavivasse a vontade de continuar vivo, “nem que seja por curiosidade”, como gosta de dizer meu amigo Marcos. Na hora certa, ter encontrado uma certa palavra, gesto ou frase que falou a meu coração reavivou todo o meu ser e me motivou a continuar prosseguindo – penso, porém, que um dia, quando precisar de mais uma palavra, nada me virá, e serei deixado a contemplar o grande vazio do Universo que me chama para juntar-me a ele. Como não quero que mais pessoas pensem como eu, que já estou irremediavelmente doente e saturado, escrevo sobre as belezas da vida e sobre viver para todo aquele que quiser ler.
Talvez, um dia, alguém diga ao ler estes dois poemas que se sentiu de ânimo renovado, tal como eu o disse ao conhecer tal ou tal obra de arte – e, para mim, este seria o melhor pagamento que poderia receber por meus esforços, no lugar do valor pecuniário ao qual tanto querem agregar-lhes.
(São Carlos, 26 de agosto de 2022)