LIVRE ARBÍTRIO: ABSOLUTO OU RELATIVO?

A abordagem sobre o Livre Arbítrio, do modo como a ortodoxia religiosa a elabora, via de regra, é superficial. A ortodoxia cristã, por exemplo, preconiza uma radicalização sobre qualquer assunto por ela abordado, esquecendo-se da existência de inúmeras interpretações no âmbito do próprio cristianismo, que diferem de suas considerações. Tanto em teologia, quanto em filosofia, e em outras áreas do conhecimento humano, existem várias abordagens sobre um mesmo assunto. Este fato alerta o inquiridor quanto a não ser prudente uma atitude dogmática, absolutizadora de conclusões sempre limitadas pelos condicionamentos do observador. Por cair neste calabouço, certas abordagens ortodoxas analisam apenas o que é aparente ao senso comum. Veja-se lá, ainda, que mesmo um senso comum mais trabalhado teria outras considerações sobre um mesmo assunto. De lance rápido, só para aquecer os neurônios, pergunta-se: quem usou o livre arbítrio para escolher o lugar onde nasceu? Quem escolheu os pais? Quem decidiu que devia nascer? Quem escolheu a própria etnia, a cor da pele, dos olhos, o tipo de cabelo, etc.? Quem escolheu todas as realidades que fazem parte, geneticamente, do seu ser? E os condicionamentos da cultura que nos dirigem consciente ou inconscientemente, e que direcionam até mesmo o caráter do indivíduo, quem os escolheu?

Livre arbítrio existe, mas parece ser sempre relativo aos nossos condicionamentos de conhecimento limitado, de educação situada em um contexto cultural que nos “amarra” às realidades que, consciente ou inconscientemente, dirigir-nos-ão em nossas decisões. Quer queiramos ou não, somos também produtos do meio. Por mais inusitada que seja a nossa reação ou a nossa decisão, não há como sermos isolados de antecedentes, de cedentes, de procedentes e de sucedentes que nos indicam um caminho, condicionando a interpretação que fazemos das informações que recebemos.

Autores existem que chamam a justiça divina em seu socorro. No entanto, neste particular, questiona-se: Sendo a justiça divina fundada em um conhecimento absoluto, julgaria radicalmente seres que tomam decisões fundadas em conhecimento relativo e sempre inacabado? Quando Jesus, no Calvário, disse: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, ele incluiu em sua intercessão todos os responsáveis por sua crucificação. Para Jesus, seus algozes não sabiam o que estavam a fazer. Ora, quando sabemos absolutamente o que estamos a fazer? Quantos não se arrependem de algo praticado, mesmo tendo agido tão convictos de que o faziam? Pelo fato de sermos dinâmicos, mudamos. E quando mudamos, descobrimos que ações do passado não seriam mais procedidas por nós do mesmo modo hoje. Observe que o próprio Jesus deu isto como exemplo, quando falou sobre duas cidades de seu tempo: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro e em Sidon fossem feitos os mesmos milagres que aqui foram feitos, há muito que se teriam arrependido” (Lucas 10: 13-16). Então, se Deus está interessado no arrependimento humano do modo como muitos imaginam, por que Ele não providenciou que os milagres fossem feitos nas cidades de Tiro e Sidon também? Seria o caso: Deus decidiu que aquelas cidades não deveriam se arrepender, ou o julgamento divino não está vinculado ou meramente condicionado a um livre arbítrio relativo ao nosso conhecimento limitado e falho? E se houver outra possibilidade de entendimento desta situação? Desconfio de que a abordagem absolutizadora do texto em debate seja uma possibilidade.

Um fato é que esta observação absolutista do livre arbítrio serve mais aos interesses dos direcionamentos religioso-moralistas, causadores de um terrorismo neurotizante e perturbador do sono alheio, quando não surte o feedback financeiro que muitos diretores de creches espirituais estão avidamente a desejar.

Parece evidente que as normas morais, principalmente as que prescrevem o controle do livre arbítrio, camuflam o fato de que ter cuidado com “as causas e os efeitos” do que decidimos acontece mais em função de nós mesmos, a sociedade. Normas morais não nos fazem mais ou menos santos; conduzem-nos para que nos tornemos mais habilitados à convivência em uma determinada comunidade. Até porque as normas de “cá”, que regem nosso livre arbítrio, podem diferir das normas de “lá”. Decisões de um livre arbítrio da cultura árabe podem diferir estonteantemente das decisões do livre arbítrio cristão.

Se assim é, parece viável uma existência com livre arbítrio não afeito a contos que dizem: “tudo que aqui se faz, aqui ou em alguma parte se paga”. Esta estorinha é reflexo de uma ideologia infantil, quando não terrorista, conservadorista e inibidora de muita iniciativa reparadora de males cometidos por muitos humanos sabidinhos.

Permanece, pois, o livre arbítrio; não o absoluto, aquele que estaria desvinculado de qualquer condicionamento da existência humana.