FILOSOFIANDO IDÉIAS SOBRE OLHOS E OLHARES - Roberta Lessa

Ah, esse meu olhar tão voltado à tradição e se assim não fosse, ela forçosa e simplesmente invadiria pupila a dentro, sorvendo-me sua força ancestral e impingindo o despertar da necessária consciência de que a herança que me é devida, assim o é, por eu fazer parte dela e ela de mim.

Hoje uma cena inusitada e digna de ser eternizada em fotografia ocorreu diante de meus sentidos: um senhor de seus cem anos, sentado em uma velha cadeira plástica, numa esquina de ruas que se encontram, em meu caso foram vidas a se encontrarem; pernas cruzadas, joelhos já gastos de vida e expostos pela bermuda e olhar absorto e ensimesmado, como se a observar com derradeira sabedoria, a ciência de não mais pertencer àquele lugar, aquele cenário que se formou enquanto lá viveu a vida: casa construídas por mãos de familiares já não mais existia, de lugar à nova arquitetura urbana e central da cidade, edifícios surgiam em lugar das árvores a crescer, comércio no que antes era campinho de futebol.

Sim, tive que parar o carro, desacreditar do que vira e descer levando a máquina fotográfica e um desarvorado correr, quase um quarteirão a fim de que essa cena não se desfizesse feito bruma ao amanhecer, antes que dela fizesse a eternidade presente ao retratá-la. Em estase, detive-me na esquina, antes de atravessar e chegar mais perto daquilo que não me pertencia, devido à sua fluidez cênica, mas que tão somente a mim tinha importância. Chegando devagar, quase em silêncio mental, desacreditando na hipnose auto impingida, abordei o ancião, que me olhou como se dissesse quem é você?

Pedi para tirar uma foto, ele não entendeu, mostrei a máquina, e ele não entendeu, e apresentei, quase que num pedido de desculpas, na sequencia el e me perguntou quem eu era, onde morava, pediu para falar mais alto, pois a surdez física ultrapassou a surdez da vida, e fez morada naquele corpo quase decrépito e tão intensamente vivido.

Desejo de fotos à parte. Adentrei no universo de Antônio, que tem esse nome por causa do santo do dia que veio ao mundo, Antonio de tantas identidades geradas num cotidiano que ninguém além dessa Antônio guarda na memória: Antonio e tradição, uma coisa só.

Invadi o celeste olhar de Antonio, que completará cem anos e com muita história. Murmurei silêncios a ouvir Antônio, que proseou sua vida comigo, contou de sua profissão no Engenho Central de Piracicaba, falou das casas que morou, dos amores que se foram, da profissão e silenciou-se em lágrimas. Lacrimei esperança em Antônio, na tentativa de consolo e por gratidão por dividir comigo lembranças dos seus que se foram.

A foto...

Ficou para amanhã na mesma hora e local, pois ele queria fazer a barba e chorar menos, ficou apenas o olhar que adentrei e que me adentrou, Antônio morou em mim por instantes, e eu soube recebê-lo por gratidão ao presente dado ao meu olhar de tradição.

Um pouco do muito que ele passou-me, é como se a tradição se travestisse de novos significados, signos e marcas no corpo de Antonio, justamente hoje Antonio Santo falou comigo e eu com certeza ouvi nele o proseio de um Santo Antonio. Este momento por mais que quisesse era só meu e de Antonio.

Tem mensagens que chegam à nós e cabe à nós compreendê-las pois muitas habitam as entre linhas dos sentidos....

Numa tarde pra lá de dez liciosa....

Roberta Lessa
Enviado por Roberta Lessa em 08/12/2014
Reeditado em 09/12/2014
Código do texto: T5062518
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