“eus”
Toda vez que saio pra rua, tenho a nítida impressão, vendo os olhos e bocas dos transeuntes que me cruzam o caminho, de sentir toda a existência do que nunca fui, ou uma pequena impressão do que eu poderia ter sido. Sinto, talvez, uma minúscula parcela do que eu realmente sou. Acabo por entrar, goela abaixo, em todas essas bocas que vejo, vasculhando as entranhas com bastante cuidado e perspicácia. Vou abrindo caminho nesse interior, indo cada vez mais fundo, tateando pulmão, coração, esôfago e estômago. Apalpo tudo que posso. Quero sentir as diversas texturas tão particulares de cada um. Saio na mesma velocidade com que entro, e nesse lampejo de observação, sinto o outro em mim mesmo com intensidade absurdamente avassaladora. Por certo, estou notoriamente errado das impressões que acabo por roubar, pois verdadeiramente crio tais sentimentos a partir de meu próprio ponto de vista, na experiência de vivenciar o outrem. Puro deleite. Tudo bem. Pele por pele, reconheço, a minha já basta. Mas todo esse enredo preenche meu vazio existencial. Há tantos outros em mim mesmo. Só que esses tais se escondem com maestria no escuro, no oco, no buraco do meu peito. É difícil agarrá-los por serem escorregadios e voláteis. Talvez, por isso, por ser aparentemente mais fácil, busco nessa experiência exteriorizada, os meus tantos “eus” perdidos pela cidade.