Caridade e pseudocaridade
"Se alguma opinião errônea é adotada em vista das aparências, tão logo a experiência adicional e um raciocínio mais preciso nos forneçam ideias mais corretas acerca dos assuntos humanos, recuamos desse primeiro sentimento e ajustamos novamente as fronteiras entre o bem e o mal morais.
O ato de dar esmolas a pedintes vulgares é compreensivelmente elogiado, pois parece trazer alívio aos aflitos e indigentes; mas, quando observamos o encorajamento que isso dá à ociosidade e à devassidão, passamos a considerar essa espécie de caridade antes como uma fraqueza do que uma virtude."
(HUME, D. Investigações Sobre o Entendimento Humano e os Princípios da Moral. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 238)
Segundo David Hume, a caridade conforme vista pelo senso comum, a que é praticada, por exemplo, ao se dar esmolas a um pedinte, não é verdadeira caridade porque, na verdade, ela implica na perpetuação da condição miserável do pedinte, porque ele se acomoda nesta condição devido ao vício da esmola a que se acostumou e, assim, não se esforça para sair dela. Constitui-se tal caridade, portanto, mais num mal do que num bem. Tal pseudocaridade está implícita em alguns tipos de assistencialismo praticados tanto por ONG's e entidades religiosas (como centros espíritas que distribuem cestas básicas) como por governos que distribuem bolsas (como a bolsa-família no Brasil).
A caridade digna desse nome não é a que é praticada para perpetuar a condição de miserabilidade do auxiliado, mas para transformá-la. Um exemplo bastante simples desse tipo verdadeiro de caridade está na ação de algumas pessoas de propósitos realmente dignos e sinceros que recolhem animais domésticos abandonados, maltratados, muitas vezes doentes e, não se limitando apenas a alimentá-los, os transformam em seres saudáveis. Um paralelo evidente pode ser projetado para os seres humanos. Caridade verdadeira não é a que incentiva o miserável a permanecer na mesma condição, mas a que transforma a sua condição para melhor.
A pseudocaridade geralmente é determinada pelo que Kant chamou imperativo hipotético, a inclinação moral condicionada a interesses egoístas (no caso da pseudocaridade, o de reservar um lugar no céu, despertar admiração, ganhar honras ou votos - daí vem a necessidade de alardeá-la). A verdadeira caridade deve ser determinada pelo imperativo categórico, a inclinação moral não condicionada a interesses próprios, impulsionada apenas pelo dever.
PS: Quando citei a caridade a animais, estava me lembrando de uma personagem extraordinária que vi recentemente num programa de televisão. A história desse pequeno grande herói, chamado Protetor Marcelinho, é contada no seguinte blog: http://marcelinhoprotetor.blogspot.com.br/p/minha-historia.html
Algumas pessoas podem questionar esse tipo de caridade, alegando que a ajuda a pessoas deve prevalecer sobre a ajuda a animais. Mas essa é uma visão antropocêntrica/religiosa na qual seres humanos estão no centro da natureza e têm prioridade sobre todo o resto do mundo animal. A ciência a cada dia mostra que as coisas não são bem assim e que as fronteiras entre nossa espécie e outras espécies são bem menos definidas do que imagina a nossa vã filosofia. De qualquer forma, independente dessa discussão, o que importa aqui é que o amor de Marcelinho pelos animais é incondicional, não está vinculado a quaisquer interesses próprios (um amor determinado, conforme frisei no texto, pelo imperativo categórico de Kant). Ademais, nada impede que tal amor incondicional se estenda também aos seres humanos.