O dom

Trovões. Relâmpagos. Raios que cortam a escuridão. E ela, da janela, assiste a tudo. Passiva. Nem sequer um fio de cabelo de sua cabeça se move. O calor morno que sobre da terra neste dia abafado de outono deixa o ar saturado. O suor condensa-se no vidro embaçado. O rock progressivo nos fones de ouvido pareciam soar diretamente dentro de seu cérebro impedindo qualquer pensamento.

Enquanto observa a pequenina aranha que passeia pelo parapeito da janela molhada, a menina de cabelos negros tem um sobressalto. Seus olhos paralisam. Sua boca entreabre-se e ela para, como se o tempo tivesse parado também. E refletida na vidraça, ela vê claramente, aquele rapaz da escola que tanto a perseguia, sendo atropelado por um caminhão carregado de sacas de farinha. E num instante, aquela imagem sumiu e ela, despertando do torpor, soltou um pequeno grito de pavor, arrancando os fones de ouvido.

Mais que depressa, digitou os números na tela do celular. Mas parou, imaginando o que diria a ele. Como diria? Sacudiu a cabeça, como para por os pensamento em ordem, e voltou a digitar, ligando em seguida. “Este telefone encontra-se temporariamente fora de serviço”. O que fazer? O que fazer? Viu um raio riscar o céu, de alto a baixo. Indo perder-se na linha do horizonte e estremeceu. Sentou na cama, colocando a cabeça entre os joelhos. Adormeceu.

No outro dia, chegando à escola, surpreendeu-se com a multidão em frente ao pátio. Comentários baixos, alunos indo embora. Pausou a música quando Alícia aproximou-se.

-Tentei te ligar, Miah. Mas não consegui.

-O que houve?- ela perguntou, temendo a resposta.

-Flávio, do terceiro ano. Foi atropelado ontem quando chegava em casa. Um caminhou derrapou na pista molhada e...

Ela não ouvia mais. Sentiu-se gelar por dentro e aquela dor tão conhecida sua tomar-lhe novamente o estômago. Os olhos encheram d’água e ela virou-se, voltando para casa. Para quê ver se nada podia fazer? Porque saber antes dos demais se ela não podia evitar? E as lágrimas rolavam em sua pele tão alva, manchando-a de negro, indo perder-se no tom terroso dos seus lábios.

Dark Moon
Enviado por Dark Moon em 17/11/2014
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