A INDIFERENÇA !
Queima-me por dentro tamanha indiferença... Não me queima os ossos; nem me queima a pele. O que o coração consome, por dentro, é a superfície da alma que nenhuma emoção reveste.
Se a envolvessem os sentimentos, ou se um frio de água corresse por dentro dela, como um rio de inverno, a alma defender-se-ia da indiferença. Escura, obscura, impura, a alma confundir-se-ia com a brandura de um coração que estava blindado e se abriu, correndo o risco de captar as doenças do desprezo, as feridas do amor não correspondido, das promessas não cumpridas...
Se assim fosse beijaria os lábios da lua simbolo dos amantes. Mas a alma não pertence ao mundo natural. Construí-mo-la como um objeto mecânico, feito de peças que roubamos ao espírito, e deixamos que funcione por si mesma, enquanto pensamos noutras coisas (que até podem ser a própria vida). Então, a alma vai ganhando existência, dispensa-nos, toma conta daquela parte de nós que pertence à noite. E, um dia, descobre-se que algo vive por dentro de nós, e nos impõe as suas regras, como se a vida já não nos pertencesse. A alma é esse destino que queremos evitar, de cada vez que avançamos pela manhã, deixando para trás os sonhos e as interrogações do sono. Pesa-nos em cada passo, abraça-nos com a sua pureza incomoda.
Depois, adquire consistência: os dedos que a procuram saem manchados de lembranças, numa espessura de dor que marca-nos por toda a vida. Como libertar-me da alma? Para que caixote do lixo a poderei deitar, num gesto distraído, esperando que o corpo se liberte, finalmente, da sua incomoda presença? Mas não: tenho de sofrer o seu fogo brando, a lenta corrupção com que se esvai, quando a lembro, e com que adquire forma, quando a esqueço. E sento-me, na esperança que a dor desapareça, sabendo que ela suspende a respiração, no receio de que o silêncio se quebre, por fim. E meu coração diz agora fecho-me na masmorra da indiferença, falei, gritei até chorei o que ah em mim... Nada ouço ! Volto ao meu estado de dor, mais solitário que em tempos passados...