Biathanatos

Nem sempre a vida foi generosa para comigo, seja pelas circunstâncias mais do que impropícias de meu nascimento, seja porque eu próprio tomei certas decisões equivocadas, tanto por impulso quanto por pura ignorância e ingenuidade mesmo. Ambos casos acabaram por se tornar uma grande bola de neve que rola no interior de meu coração, ficando cada vez maior e maior, e não é raramente que pensei em suicídio para fazer com que pare.

Não posso (tampouco quero) falar em termos universais quando penso em suicídio: não sou, nem quero ser, um porta-voz de todos aqueles que se mataram ou que o pretendem fazer, portanto no presente trabalho trato a meu respeito apenas. Igualmente, não quero que nenhum leitor pense que sou total e completamente a favor do suicídio – acho-o uma circunstância muito infeliz, que deve ser prevenida antes da bola de neve alcançar proporções exorbitantes. Sei também que haverei de ser duramente julgado por falar de modo tão livre sobre um tema tão espinhoso e tabu, mas já estou acostumado a ser mal compreendido por aqueles que me cercam. Sem mais delongas, iniciemos.

Tenho uma certa fixação pela ideia da morte – criado sob o pétreo catecismo da Religião cristã, fascinava-me o pensamento de uma miríade de almas boas vivendo num Paraíso acima das nuvens, e igualmente as más padecendo no Inferno. Sonhava em conhecer ambos lugares de algum modo, crendo que seria um Dante antes mesmo de saber quem era Dante; depois de velho, tendo me apropriado e me vestido do manto do Ceticismo, deixei a Religião por completo mas nunca abandonei totalmente uma crença na alma e sua imortalidade. A essência humana talvez perdure de um modo ou outro, pensei eu. Ante meu contato com a literatura, o maior baque que os preceitos da Religião sofreram em meu interior foi a biografia de Thomas Chatterton. O suicídio é um pecado, assim diziam, mas que Deus de amor poderia olhar àquele pobre menino nos olhos e condená-lo ao Inferno por ter feito o que fez em tais circunstâncias? Tantos outros como ele (como eu!) receberiam punição semelhante? Era inadmissível!

Também não via com bons olhos a doutrina da reencarnação, apresentada a mim sob os conformes do espiritismo (até hoje ainda não estudei com afinco seu counterpart da religião hindu, muito mais interessante e apetecível a mim) – igualmente cruel à minha concepção é obrigar uma nova existência a ser punida por pecados de sua predecessora. A partir daí, constatei que a Religião muito pouco pode fazer por quem pensa em se matar, fora povoar sua já transtornada mente com castigos e mais castigos.

Eu próprio parei de temer a morte há anos: bem sei que é um ato necessário para a renovação do mundo (renovação esta que já não sei dizer se é de todo benigna), e de um ponto de vista cósmico a passagem de toda a Humanidade pela Terra é de pouca significância. Quando pensamos nos grandes monumentos deixados pelos antigos há séculos, há milênios, o que nos vem à mente é a imagem do monumento em si – e não as incontáveis pessoas que erigiram tal monumento, cujos nomes a História nem fez questão de preservar. Da mesma forma, podemos segurar em mãos as obras de algum escritor do passado remoto – elas perduram, mas o que sabemos nós de sua vida, de sua personalidade, de seu caráter, que não provenha de depoimentos (decerto muito parciais) de terceiros, estes também já mortos e sepultados há eras? “Os homens passam, as músicas ficam”; “ars longa, vita brevis”; and the like, só para não perder a oportunidade de fazer duas citações das quais gosto.

Bem sei que, se me suicidasse, meus amigos sentiriam minha falta; mas também não gostaria que suas vidas estagnassem por minha causa. Sem ser de todo esquecido, não quereria ser constantemente lembrado – ainda mais porque, como já elucidei, minha vida não passa de uma mísera gota no oceano do Universo, e não traria consequências de grande escopo ao Todo. Tenho eu também minha própria produção artística, que espero ser preservada de um jeito ou outro após minha morte – pelas pessoas CERTAS. Haveria coisa ou outra que jamais teria tido oportunidade de tentar, mas isto é, igualmente, de pouquíssima importância ante o Todo. Não me considero uma pessoa materialista, tanto é que de uns anos para cá passei a sentir ódio do mero ato de ter posses, mas às vezes sinto medo de, no Além ou coisa que o valha, depois que eu me for, não possa eu ter acesso a um bom livro. Ora! Da vida nada se leva, como diz o velho provérbio – o que aconteceria com meus pertences? A eles também estaria guardada a aniquilação? Para quem passaria sua posse? Não confio em mãos alheias manuseando meus livros! Nem mesmo as de meus familiares, que, de qualquer forma, são tão avessos à literatura séria. Acho que gostaria de ser enterrado com eles, se possível – aos demais objetos, como minhas roupas, que fossem doados à caridade: um pobre precisaria delas mais do que eu.

Como se vê, falo com absoluta certeza a respeito de tais assuntos: para alguém que, cansado há anos do mundo em que vive, ensimesmado num universo paralelo quimérico conjurado pela própria mente como consequência, onde não me podem atingir a marcha ao abismo da civilização – sua avidez por lucros, seu consumismo exacerbado, seu flagrante desrespeito por tudo aquilo que é bom, belo e genuíno – e os insultos que a mim dirigem, a morte para mim não passa de uma suprema aventura, a última fuga dos desiludidos; mas o destino é incerto, e no fim não sei dizer se vale a pena chegar até ele antes das estipulações do tempo natural. Pode ser que muito em breve eu descubra – mas de que adiantaria se não pudesse compartilhar a resposta de onde estou?

***

Já desejei que houvesse um modo de realizar esta fuga sem que se fosse necessário morrer – fugir para a sua própria introspecção, um microcosmo particular alheio ao Tempo e ao Todo: foi pensando nisto que idealizei dois personagens meus, o mago do “Alceste” e Leoline do “Kunstmärchen”. O primeiro, no entanto, não de forma intencional, a princípio.

Em minha œuvre, pelo menos até então, bruxos, magos, feiticeiros e afins desempenham um papel benigno, como guardiões de sabedoria oculta há muito esquecida e um instrumento de contraste entre a fria realidade e os encantos oníricos da irrealidade. É por isso que ambos são como ermitões, vivendo alheios ao mundo, e em ambos poemas são eles que resgatam o protagonista de se render à morte. O que diferencia um do outro é que a mensagem contra o suicídio do “Alceste” é mais tongue-in-cheek, pois se trata de um poema de cunho byroniano – no segundo poema a mensagem já é séria em sua totalidade. Não obstante, os dois magos são inspirados em pessoas a quem amo, e com quem muitas vezes desejei fugir: o mago do “Alceste” é inspirado no vocalista da banda Tvangeste, um velho amigo, e Leoline é Marcos Andrada.

Há quem diga que sou fraco por querer tanto fugir da realidade que me cerca, mas eu por mim considero-me demasiado forte por tanto ter aguentado por tanto tempo. Se a morte prematura me fosse vedada, pelo menos uma fuga temporária aos confins da Percepção teria o mesmo efeito. Se é que, no fim, não sejam a mesma coisa…!

(São Carlos, 24 de agosto de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 15/10/2014
Reeditado em 24/08/2022
Código do texto: T5000174
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