O que tem pra hoje
Ninguém é mais verdadeiro para com a integridade de suas motivações internas do que aquele que tira a própria vida. O suicídio é a apoteose da sinceridade para consigo mesmo. Ao contrário da maioria vivente, que prefere fechar os olhos à desconfortável inevitabilidade dos fatos, o suicida vê claramente o futuro negro que se descortina diante de seus amargos olhos: a falsidade dos que se dizem seus amigos, a ingratidão daqueles que, num mundo ideal, deveriam amá-lo, os ponteiros envenenados do tempo riscando rugas em seu rosto, a progressiva decadência de sua ignóbil carne em face da constante atração exercida pelo núcleo planetário. Elétrons privados da capacidade de saltar quanticamente para outras órbitas, a ilusão do livre-arbítrio nos impede de perceber, no recôndito enquistado de nossas almas limitadas, a colossal inexorabilidade das inclinações que nos são naturais (no âmbito corriqueiro da inaturalidade que representamos). Colados ao chão, apegados às convenções, acorrentados ao corpo, sempre prisioneiros de algo ou alguém, sempre trancados na jaula de nossas incongruentes convicções. Tanta indiferença, tanta preocupação... mas não, não existe esse 'nós', viver é um exercício de egoísmo, a sublimação da solidão, da misantropia, disfarçando-se, ocultando-se, simulando o contrário pelo bom andamento da hipocrisia e da farsa. Banalidades, ambivalências, importâncias, sejam elas concretas ou abstratas, diretas ou indiretas, mas que fatalmente convergem, como uma carga inefável, para um único e infeliz ponto em todo universo: o eu, a criatura individual, o particular organismo que se é. Assim, como um jogador de xadrez que deita o rei em meio à partida – após dar-se conta das exíguas funcionalidades do tabuleiro – o assassino de si mesmo sai de cena, sem haver inteiramente perdido um jogo que seria impossível ganhar. E quem poderá culpá-lo? É o que tem pra hoje, é o que sempre haverá.