Tribo e Terra

Irlanda. Planície de Magh Tuiread. Uma imemorial época no passado. Essa planície havia acabado de conhecer sua segunda grande batalha. O campo ainda carregava os sinais da batalha divina que ali havia sido travada As Tuatha Dé Danann contabilizam sua perdas. A Lugh Lamfhada, o deus das muitas artes e responsável pela vitória, é trazido o maior troféu: Bréas, o Belo, antigo rei da Irlanda, e aliado dos Fomorian. Um acordo deve ser feito para salvar a vida de Bréas; ele promete às Tuatha Dé Danann a possibilidade de ter quatro colheitas anuais. Lugh recusa, e pede a Bréas apenas que revele as épocas mais propícias para o cultivo e a colheita. Ele o faz e é libertado.

Por que Bréas foi poupado? Ele foi o responsável pela maior batalha da mitologia irlandesa, onde campeões de ambos os lados tombaram. Em algumas variações da lenda, o próprio rei Nuada seria morto. Por que poupar essa criatura, responsável por tanta desgraça? Quando lemos a mitologia irlandesa, a nós vem o pensamento simples de que as Tuatha Déa são heróis e os Fomorian são vilões. Todos os grandes Deuses da mitologia irlandesa estão do lado das Tuatha: Lugh, Nuada, Morrighan, Oghma, Dagda, Brighid. Os Fomorians são seres grotescos, vindos do mar, que buscam tomar a terra das Tuatha Dé Danann. Ou seja, são vilões, são demonios, são o que há de mais maligno na mitologia gaélica. É? Podemos afirmar isso com certeza?

Os contos foram compilados por monges católicos, por isso é mais que natural que encontremos esse dualismo entre “bem e mal”, mesmo se tratando de uma mitologia pagã. Isso ocorre também na mitologia nórdica, com a guerra entre os Aesir e os Jötnar. Isso ocorre também na mitologia hindu, com a guerra entre os Devas e os Asuras. Isso ocorre também na mitologia grega, com a guerra entre os Olímpicos e os Titãs. Essas mitologias tem uma semelhança específica com a mitologia céltica: são de origem Indo-Européia. Todas as mitologias Indo-Européias tem o conceito da batalha divina. Mas ela, de acordo com algumas interpretações mitológicas recentes, pode ocultar um conceito muito diferente do que a maioria pensa.

Uma explicação longa sobre a relação entre essas culturas e sua estrutura mitológica não é o objetivo aqui (sendo totalmente honesto, gosto de deixar isso para o Ramo de Carvalho), mas podemos fazer um pequeno resumo: qual o povo chegou primeiro à Irlanda? Os Fomorian estavam lá antes dos primeiros povos que invadiram a ilha esmeralda. Os Jötnar existiam antes dos Aesires e Vanires. Os Titãs existiam antes dos Olímpicos. Quem são as Tuatha Dé Danann? São os Deuses da Irlanda, óbvio. Mas que tipo de deuses? Entendemos que eram as entidades cultuadas pelos povos célticos daquela região. Mas qual sua origem? Por um período longo de tempo, a tradução do nome “Tuatha Dé Danann” veio como “Povos/tribos da Deusa Danu”; é uma tradução possível? Dada a irregularidade das regras da língua irlandesa medieval e antiga, sim, é. E conta com o apoio de haver o culto, na europa central, berço da cultura celta, o culto a uma deusa Danu, que batizou o rio Danúbio. Ou seja, tudo se encaixa. Ou quase. Danu não aparece na mitologia. Nâo há citações sobre ela. Não há lendas sobre ela. A poderosa raça de deuses da Irlanda seria derivada de uma deusa-mãe que não é digna sequer de ser registrada? Algumas interpretações nos dizem que o nome Danu, na Irlanda, seria alterado para Anu, uma deusa um pouco menos enigmática, mas ainda laconica. Estudos mais recentes,contudo, que trabalharam na forma de mitologia comparada, chegaram a uma nova possível tradução (também totalmente possível no pensamento linguístico): “As Tribos dos Deuses das Artes/Ofícios”. Em irlandês, dán é “arte/ofício”, os homens da casta erudita gaélica (dentre eles, druidas e bardos) eram chamados os Aés Dána, “os Homens das Artes”, e o deus da vitória em Magh Tuiread é Lugh Samildanach, “das Muitas Artes”. Os Fomorian estavam ali antes das Tuatha Dé Danann, e sua origem é o mar, fonte de toda a vida. Dentro dessa interpretação mitológica, um tanto polêmica, mas bem pautada, os Fomorian seriam as representações das forças primordiais da Terra, aquelas que são hostis à humanidade, à Tribo.

Como assim? A natureza é a vilã da história? Antes de apedrejar o pobre bardo, pensem um pouco. A natureza é repleta de perigo para nossa espécie. Frio, calor, chuva e muito mais. Nossa espécie de “macacos mutantes” (citando o Omnia) precisou desenvolver ferramentas para sobreviver no mundo. Isso não é mentira, e nem somos a única espécie a fazer isso (vejam o artigo de Endovelicon sobre o mesmo tema). E não fizemos errado, pois precisávamos disso. O que nós perdemos é o equilibrio. Lembrem-se das Tuatha Dé Danann: ainda que eu julgue errado classificar deuses em “tabelas” (deus da guerra, deus da cura…), as associações típicas dessas entidades (eu prefiro chamar de afinidades: jogo xadrez melhor que basquete, não quer dizer que não possa jogar basquete, apenas não tenho tanta afinidade com isso) são com a atividade humana: Brighid é associada com a poesia, com a metalurgia, e com a herbologia curativa. Morrighan é associada à guerra. Oghma, à comunicação e ao seu alfabeto, ogham. O Dagda é muito associado à agricultura. Lugh, bom, é associado com tudo. Eles são os Deuses que inspiraram o desenvolvimento social, na luta para que a Tribo pudesse prevalecer contra as forças primordiais que poderiam devastá-la.

Eu escrevi isso tudo só pra dizer que o papel da Tribo é derrotar e submeter a Terra? Não, não é esse o papel da Tribo. Nós perdemos o papel da Tribo. Na verdade, não é uma história de heróis e vilões. Lugh perdoa o líder Fomorian após aprender sobre os ciclos agrícolas. E a ele foi permitido continuar, e à Tribo conseguiu o conhecimento que precisava. Os Fomorian são vilões? Muitos das Tuatha Dé Danann tem origem mestiça, sendo meio Fomorian. Eles carregam a dicotomia entre Tribo e Terra dentro de si. Bréas é quase uma contraparte de Lugh, estando no lado oposto, mas ambos sendo meio-Fomorian, meio-Dé Danann. O papel da Tribo não é submeter a Terra, e sim entrar em acordo com ela. Nossa espécie lutou muito para sobreviver nesse mundo, mas após vencer essa luta, temos de entender que precisamos da Terra, como as Tuatha Dé Danann precisaram de Bréas. Essa é a função da Tribo: sobreviver, mas em acordo com a Terra, em acordo com suas forças primordiais, pois ainda dependemos delas. E tanto é o papel da Tribo manter esse acordo em equilíbrio, que Lugh recusa a oferta de Bréas de quatro colheitas anuais (algo que ele, uma deidade da Terra e possivelmente da Fertilidade, poderia facilmente prover), e apenas pede para aprender como lidar com essas forças. É uma trégua entre Tribo e Terra.

Nós perdemos esse pensamento hoje. Hoje, não buscamos mais equílibrio. Hoje, abraçamos um pacto sinistro em busca de mais e mais produção, esgotando a Terra e fazendo com que suas forças primordiais se voltem contra nós. E o papel da Tribo é reencontrar esse papel. O papel de reconhecer o tempo e as necessidades da Terra, ao invés de esgotar seus recursos e trazer mais forças Fomorian sobre nós. Por algum momento, aposto que pensaram que eu estava dizendo para esquecermos as Tuatha Déa e nos voltarmos aos Fomorian, não é? Não, não é isso, mesmo porque boa parte deles (as Tuatha) tem sua “parte primordial”, voltada para a natureza, sua natureza mestiça-Fomorian, bem definida também. O que digo, nesse post que falou muito sobre mitologia, mas apenas como guia para falar sobre a natureza, é que precisamos encontrar a sabedoria de Lugh, de saber usar dos recursos que a Terra nos dá, ao invés de provocar suas forças para devastar a nós mesmos, a Tribo. A Tribo e a Terra já terminaram a sua batalha, temos nosso lugar no mundo. Agora é a hora de encontrarmos o acordo com ela, pois dela ainda dependemos, e enquanto isso não for feito, estaremos em constante risco de ter de voltar a lutar contra manifestações cada vez mais hostis à nossa existência no planeta. E, por ignorarmos a sabedoria que os Deuses nos legaram, de buscar o acordo ao invés de abusar da Terra, eu duvido que eles estejam do nosso lado na próxima vez que a luta começar.

Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com

Wallace William
Enviado por Wallace William em 24/07/2014
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