Resgatando a nós mesmos

Naquele dia, diferentemente dos outros tantos, não tínhamos dado sinais de desespero. Também não me lembro de termos reclamado das dores ou da falta de algo. Nossas emoções nunca estiveram tão contidas. E quando a noite caiu, após um dia tão atípico, sentimos, pela primeira vez, que não havia mais porque reprimirmos nossos desejos. E com o passar das horas, isto se tornava cada vez mais latente e, estranhamente, propício para uma ocasião como aquela.

Estávamos tão próximos, e há tanto tempo, que me parecia algo quase natural. Diante de tantas faltas que sentíamos aquela era a única que poderíamos saciar. Tínhamos tempo. Aliás, tempo era a única coisa que, aparentemente, tínhamos de sobra. Além disto, não haveria testemunhas e, portanto, qualquer julgamento dadas as nossas diferenças. Durante horas, ficamos atônitos diante daquela possibilidade. Mas amanheceu sem que conseguíssemos dar vazão aos nossos instintos.

E durante o dia, a nossa realidade era outra. Tínhamos de nos manter atentos. Talvez pudéssemos ouvir algo. E se ouvíssemos, teríamos de estar prontos. Já tínhamos feito isto antes, mas de maneira desconcertada. Nos empolgávamos diante de qualquer barulho, mesmo sem a certeza de te-lo ouvido. Embora nosso desespero aumentasse com o passar dos dias, parecia natural que cada vez fizéssemos menos. Nossas forças já não eram mais as mesmas.

Mas, mesmo se nos encontrassem e nos resgatassem, resgataríamos também a nossa dignidade diante do que havia acontecido? Se fossemos libertados e então julgados e condenados, não estaríamos igualmente presos?

Pelo menos lá, estávamos os dois juntos. Melhor, lá, pela primeira vez, tínhamos um ao outro e parece-me que isto era exatamente o que nos fascinava. Mesmo que pudéssemos estar sendo levados pela força das circunstâncias, não foram poucos os momentos em que não quisemos mais nada nem mais ninguém.

Leo Pimentel
Enviado por Leo Pimentel em 23/07/2014
Reeditado em 25/04/2016
Código do texto: T4893431
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