Noite
E é sempre na escura nudez da noite que se fazem os que pensam, os que sentem, os que ouvem, os que vêem e os que fazem. Na madrugada a gente sempre se perde em pensamentos, principalmente depois daquela conversa desagradável com alguém que a gente ama, pensamentos esses que podem ir desde planos de vida e/ou reconciliação e/ou vingança até àqueles de medo, desconfiança e dor. Acho que é por isso que todo mundo sempre chama a noite de calada: porque a gente pensa e diz e faz tanta coisa nela e ela nunca diz pra ninguém e, quando diz, é sempre soturna. Deve vir daí a palavra “noturna” também. Quem é noturno é soturno, isso é fato, e creio que esse fato deva-se ao silêncio da Calada. A noite é um túmulo, uma bonita mãe-viúva que às vezes chora a dor do falecido em nós na chuva, talvez tentando também misturar as lágrimas de quem a ela chora com as próprias lágrimas que escorrem do céu. Ah, o céu é a vestimenta da noite, às vezes meio claro, marrom arroxeado ou roxo amarronzado, outras puramente negro. De vez em quando, quando a noite quer sair e se curtir na própria escuridão, enfeita o céu roxo ou marrom ou preto com pequenos diamantes ou grandes pérolas, ou quem sabe vice-versa, mas só quando não fuma e se encobre da fumaça das nuvens cinzentas e finas que vão embora de manhã. Essas nuvens de seu cigarro cósmico podem também ser enfeites, um pouco mais feios devo dizer, como véus que cobrem pouco de sua viuvez e a impedem de se cobrir de pérolas ou diamantes. Quando fuma, não pode ouvir as coisas boas que contamos, só os lamentos, porque é quando está mais negra e triste e só ouve quem está assim também. Às vezes na praia, depois que a luz se foi e Ela se inicia, ainda em toda sua soturnez, parece que suas vestes beijam o mar e a areia e cobrem todo o resto das coisas e seres. Acho que esse é seu maior romance, quando se encontra com o mar e os dois vivem sua própria volúpia calada e com cheiro de sal e som de ondas. Depois da volúpia sobe o perfume incomparável de vida, e é nessas horas, e só nessas horas, que todos acreditam em Deus. Os beijos depravados mas castos prosseguem até que surja o primeiro feixe de luz no horizonte, atrás dos amantes. Quando nasce o Sol, quando nasce o falecido Dia, é que Ela se desnuda por inteiro e morre por algumas horas todos os dias nas vestes da alvorada. Há pessoas que dizem que o nascer do sol nesse mesmo horizonte é algo que todos devemos ver pelo menos uma vez na vida por ser simplesmente fantástico. Eu sou do tipo clichê que prefere ver o pôr do sol porque clichês como esse valem muitíssimo mais a pena serem vistos. É quando morre a luz e nasce novamente a tão doce solidão da noite, pouco depois da incômoda e impaciente amargura vespertina. Sim, ela é solitária, e ouve todos os nossos lamentos, as nossas alegrias, lava nosso pranto com o próprio e se enfeita suave para nos fazer enamorados. As cores da morte solar que precedem essa nossa Mãe querida são fantásticas, bem mais que o nascimento solar, mas só o que posso dizer mais dela é que jamais seria simples ou fantástica como aquelas outras coisas com outras cores. Ela não é uma coisa e quase sempre carrega consigo a morte de todas as cores existentes, o vazio preenchido por choros ternos e amores descompassados. Ela é perfeita em todo o seu silêncio, em toda a sua viuvez e em toda a sua soturnez. Nossa Mãe querida, calada, amada…