O barro é o mesmo
- Percebe, amigo? Já quis muito ir além. Ir além nem que fosse sem vintém. Mas olha, vou dizer: tenho uma desconfiança braba desses ostentadores. Não, não estou falando dos que saem banhados a ouro reluzindo pra tudo que é lado. Arre! Estes a gente até ignora. Estão vendidos. A quê eu não sei, mas sei que estão. Eles não têm as coisas: as coisas os tem. Os ostentadores de que falo são esses paladinos da simplicidade vaidosa. Você sabe o que é isso, não sabe? Eles estão escondidos sob a capa da humildade exacerbada, do pequeno. Jantam junto à mesa dos que doam e estampam em todos os muros, dos que atestam o que fazem aos outros. Sabe como é, amigo: quase ninguém faz boa ação nas surdinas. Doador anônimo é bicho raro.
Mas não, não me confunda. Nem diga desdizendo o que eu disse. Não sinhô. Eu não condeno quem é simples, quem é humilde. Arre! Lá vou condenar quem não faz mal nenhum pros outros. O simples, o humilde, que não sabe que o é/são — ou que sabe e não perde tempo pensando isso nem olhando-se frente ao espelho, achando que está em lugar mais alto —, este tem meu respeito. Porque tá lá no livro do nosso Sinhô, né? "Vaidade, tudo é vaidade".Tem pra onde correr não. E a simplicidade banhada de modéstia não foge. É também. Seu Machado já disse.
Vê aquele ali? Ele não segue o padrão. O comum. Ele condena o ir além. Ele despreza a volúpia, mas não percebe que ela o move. Veste qualquer coisa, consome e busca apenas o que lhe agrada. Mas o que é que nos agrada? O que realmente nosso espírito pede e o que nos é enfiado goela abaixo pelo espírito alheio? Ele não ostenta carro ou ouro, meu amigo. Porque quem o faz é pobre de espírito. E concordo. Mas ele ostenta outra coisa, outra coisa... E quer criar padrão, entende? Ele é o outro! Mas de outra forma. O barro é o mesmo. Vieram dum lugar só.
Porque o pior Narciso, meu amigo, é aquele que não sabe que olha o tempo todo para o próprio reflexo...