LEITURA, SOCIEDADE E PODER

A historiografia e a memória cultural demonstram que em diversas sociedades a leitura e a escrita foram utilizadas como instrumentos de dominação de uma maioria sem instrução formal, crítica e reflexiva por uma minoria intelectualizada e poderosa que detinha o controle sobre o aprendizado, a difusão da cultura letrada e a produção textual. Na Antiguidade e na Idade Média, algumas instituições de legitimação do poder, como o Estado e a Igreja, sempre advogaram para si o controle do conhecimento e a forma adequada de se ler textos, além de escolher quem poderia ler e o que se poderia ler na sociedade.

Na modernidade, sobretudo com a queda de alguns regimes absolutistas, por exemplo, com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, um novo sistema, o Capitalismo, provocou a reorganização de alguns cenários e um aumento da propagação do alfabetismo, visando obter uma sociedade ainda mais leitora e consumidora dos produtos que o mercado financeiro produziria, dos quais se coloca, também, o conhecimento e a produção escrita, como a Literatura. À primeira vista, o discurso pode parecer bonito, democrático, libertário. No entanto, a leitura e a escrita não foram difundidas, a partir das Revoluções, à toa e, muito menos, foram aprofundadas as suas capacidades criativas e reflexivas a serviço do uso de todos. Primeiro, porque o Capitalismo surgiu com uma proposta da classe burguesa e latifundiária dos países da Europa e não priorizava toda a população, muito menos, o abandono de grande parte do povo da sua situação de ignorância. Depois, porque a leitura não deveria ser qualquer leitura e não poderia ultrapassar o sentido de uma mera decodificação de letras e sons, como se a palavra tivesse apenas um significado fechado e estanque. Além disso, não era qualquer um que poderia arriscar a fazer uma leitura considerada “correta”, mas só poderiam fazer leituras consideradas “corretas” aquelas pessoas habilitadas por outra instituição poderosa de legitimação do poder e do conhecimento que era a Ciência. Nesse sentido, o Positivismo, no século XIX, foi a corrente responsável por difundir a ideia de “Verdade” científica e utilitária. Isso fez com que a leitura tivesse um sentido estreito e não fosse uma atividade efetivamente democrática, libertária e instrumento de reflexão crítica pela maioria da sociedade.

No entanto, estamos aqui, hoje, podendo discutir e refletir sobre essas questões e duvidar de algumas “verdades” do passado e de algumas instituições de poder que escolhiam quem poderia ler, o que ler e como ler. Isso foi possível porque sempre houve certos transgressores e desconfiados, pessoas que aprenderam a ler do modo como lhes habilitavam, mas que ficavam insatisfeitos com o sentido literal das palavras, que mergulhavam nas metáforas de um poema e/ou de um romance, permitindo que o imaginário atuasse de forma efetiva, transformando, assim, a imagem de um outro mundo, de outras identidades, de outros futuros em possibilidades e oportunidades concretas para resignificarem as suas vidas. Não se pode também ser ingênuo, pois abrir um livro a qualquer hora e achar que o mundo será modificado no mesmo instante em que fechá-lo é um ledo engano. A leitura é um processo e um exercício. Necessita de movimento, de disponibilidade do leitor para refletir sobre as palavras que estão no livro e que foram escritas por alguém, num determinado tempo histórico e numa determinada sociedade. Não é algo parado, que funciona somente como ponte entre as letras mortas e um sujeito leitor adormecido e engessado. No meio do caminho entre a palavra percebida pelos olhos e o processo mental de reflexão do leitor, há um jogo, uma troca, uma interação que prevê que o resultado pode ser novo a cada leitura, ainda que seja de um texto velho e bastante lido. Deve-se perceber que o momento é outro, você já pode ter lido outras coisas, pode estar passando por uma fase diferente da vida, e isso modificará o sentido que irá construir na leitura. Somente percebendo a importância deste ato é que o sentido original da palavra livro (“livre”) poderá ser retomado.