Nas rodas, descobre-se a literatura!
Quando ouvimos a palavra literatura, nosso imaginário social não nos leva à sabedoria popular. Ao contrário, remete-nos aos mais experientes com as “letras” e nos faz pensar. O nosso subconsciente letrado nos remete imediatamente aos clássicos e eruditos e nos esquecemos facilmente que a literatura pode extrapolar as barreiras da intelectualidade.
O mesmo se dá quando falamos em poemas. A maioria de nós pensa em Clarice, Vinícius, Carlos... Mas nem nos lembramos dos “Joões e tampouco das Severinas”! Talvez seja porque “João” lembra D. João VI que lembra a mentirosa descoberta que lembra...! Ou talvez por ser um nome popular demais e antigo, para não adjetivar como medieval. Medieval lembra raízes e nelas está presente a oralidade do ser humano!
Contada; o que foi dito? Passado à frente? Pode ser também “contar”: Um, dois, três... “Escansão”! Pronto. A palavrinha é feia, parece conversa hermética de subversivo. Subversivo, forca, corda, cordel... O nosso pensamento trigueiro saltita de palavra em palavra concatenando uma à outra e então se descobre uma frase, um verso, um poema... Assim é a “Descoberta da Literatura”. Palavra após palavra e, com maestria, João Cabral de Melo Neto nos fascina com o seu “romance”.
Como pano de fundo o poeta deixa clara a possibilidade de ampliar descobertas, basta que se tenha sede de saber! No caso, os “cassacos do eito”! A reunião era semanal. Podiam “escrever” e/ou “ler” suas narrativas em redondilha maior; melhor dizendo, em versos de sete sílabas métricas! Falamos difícil? Com certeza não! Vejam:
“Batatinha quando nasce
Esparrama pelo chão
Menininha quando dorme
Põe a mão no coração”
Difícil entender? Não na prática, realizada tão espontaneamente. E de espontaneidade os cassacos do eito entendiam, com seu saber popular expresso pela oralidade, cujo repertório mais se enriquecia após sessões de cordel. E o filho de engenho? O pequeno, e por que não dizer grande tutor, era o leitor que com maestria transformava o ilegível e desconhecido em concreto e sonoro àqueles indivíduos excluídos da sorte.
Se nessas rodas - verdadeiras rodas por sinal, houvesse mais de um leitor, quanto mais não se compartilharia? Mas não há de ser um leitor qualquer, pois antes de tudo é preciso gostar, fazer parte, viajar pelas aventuras e desditas ali narradas, e esta figura é muito bem representada por João Cabral nestes versos autobiográficos. Seu poema nos faz relembrar o prazer da roda de leitura compartilhada, leitura de fruição, simplesmente imaginária.
E no que consiste o poder subversivo dessa descoberta? Somos levadas a refletir que se a casa-grande representava o poder institucionalizado e se discordava da prática era porque ela trazia em si a semente perigosa da reflexão, do pensar além dos padrões impostos pela classe dominante da época, e isso cheirava a perigo de subversão! Que poder traz em si uma prática que pode romper com paradigmas impostos ao fazer denúncias (ainda que veladas ) contra a injustiça social que se perpetuava há séculos?
Se os "cassacos do eito" descobriam, na fruição da leitura oralizada, as diversas portas que se abriam para seu entendimento e percepção de mundo, que dizer do jovem leitor, que também protagonizava a prática social? Que influências a leitura do gênero tão estigmatizado pelos poderosos da sociedade da época podem ter tido sobre o filho-engenho?
Assim, a leitura não remete somente ao imaginário, mostra também outras realidades, distantes, educa e faz enxergar a vida por outro viés, desenvolvendo sentimentos e sensibilidade ao outro. Humaniza o homem.
Ler é uma descoberta transformadora, individual a princípio, mas coletiva se socializada e discutida. Sendo tão transformadora, é subversiva, pois ao aproximar o leitor da essência dos fatos, descortina-lhe o véu da ignorância e desperta-lhe a indignação diante das injustiças. Quantas lutas históricas já foram travadas após a leitura edificante de um livro "subversivo"... Livros já foram até queimados por serem considerados perigosos!
"Ler devia ser proibido", nos diz "um" vídeo, porque a leitura (para os “Joões e Severinas”) torna "a gente" perigosamente mais humanos...