"Classe média." Um desabafo sobre não conseguir fechar os olhos e sorrir enquanto há sofrimento debaixo do meu nariz.

Dizem por ai que enlouqueci. Que deveria sorrir pelo que tenho, pelo carro, pela casa, pelo dinheiro, pela viagem de férias, pela roupa de grife, pela empregada que arruma minha cama. Dizem por ai que deve ser falta de religião. Afinal, deveria estar de joelho a agradecer todos os dias por meus privilégios. Concordo com eles. Enlouqueci. São justamente esses privilégios que me matam, que me enojam. Tenho pavor, medo, horror, desprezo pelo carro, pela roupa, pelo dinheiro, e principalmente por todos aqueles que curvam suas costas açoitadas desde os primórdios.

Branca, jovem e classe média alta. Dizem por ai que não tenho direito de levantar bandeira revolucionária, talvez por já ter direitos de mais...

Mas mesmo assim, reivindico somente mais este. Ou melhor, troco todos os outros por esse.

Grito, medito, repito com calma... Em vão. São mil os pseudo-argumentos com que tentam desmoralizar. Dizem, dizem, e não me dizem nada. Ouvem e diante minhas lágrimas, riem.

Família racista, classista, machista e tradicional. Dizem: é tudo fase. É jovem, é sonhadora, é ingênua, é rebelde sem causa.... E é inegavelmente louca. Louca, louca sim. Já disse uma vez e repito, to vestindo minha camisa de louca.

Universidade é o caminho! E eu, num devaneio, não encontro a essência da vida em nenhuma grade curricular. Chega a ser engraçado, nessa minha loucura toda, vejo que aqueles que cursam universidades renomadas, aqueles que colocam seus diplomas na parede, ensino médio, faculdade, curso profissionalizante, mestrado, doutorado, magistrado, P.H.D... São as mesmas pessoas que não conseguem responder perguntas simples. "Porque aquele homem ali dorme no chão, mamãe?" E não se tem uma resposta. Ou, se vêm alguma, são os mesmos argumentos direcionados à mim num futuro, louco, vagabundo, revoltado, bêbado, ou drogado. Sem ao menos conhecer quem é aquela pessoa que se encontra ali deitada, jogada, à margem de nossos sonhos verdes -cor de dinheiro. E não o fazem porque simplesmente não enxergam. Os olhos de uma criança enganam. Aos olhos de um adulto não há nada ali na beira da calçada. Simplesmente não há nada. Seu nome não está nas ações, não tem conta bancária nem propriedade privada. Também não lhe deram qualquer (falsa) propriedade intelectual, da qual nós, classe média, engolimos guéla abaixo. Então, não se enganem. Quando eles não respondem, não é por frieza. Eles simplesmente foram ensinados que não há uma pessoa atrás daquele lixo todo. Não há vida sem dinheiro, foi o que tatuaram em sua pele ao nascer. Por tanto, quem não tem dinheiro, não possui vida. É só mais um braço que arruma minha cama, é só mais uma mão que limpa a sujeira que fiz na mesa do café da manhã da minha super(faturada) viagem de férias.

Se há uma coisa que sempre me incomodou em ser classe média foi a servidão. Não entendia, e não entendo. Me sinto incomodada quando o garçom se dirige à mim como "senhora", ou qualquer funcionário abaixa a cabeça, com ar de submissão. Nos livros dizem que a escravidão foi abolida, mas o que vejo a minha volta não é isso. Mudaram os escravos. Expandiram-se. Não, não é o negro que é mais escravo. Não é SÓ ele. Não se compra escravos por cor da pele, não somente. Hoje também os escolhemos pelo número da conta bancária, pela roupa que vestem, pela "instrução" que negamos à eles como forma de sobreposição.

Como disse, enlouqueci. Olho pros lados e vejo minha família estourando champanhe enquanto a do vizinho limpa meu banheiro. Olho no espelho e me vejo dona de engenho. E é essa a parte que mais me dói. Fui criada assim como eles e acostumo. Faço testes sobre formulas que fui obrigada a decorar para resolver equações de décimo grau relativos à órbita dos planetas, mas nem se quer me perguntaram se sei o que é nosso planeta. E não me perguntaram, porque não sabem. Tenho uma professora incrível de física, ela poderia calcular qualquer coisa, e responder o que você quiser saber sobre física quantica. Mas ela nunca me perguntou o que é o planeta. Por que, e pelo quê vivemos. E não o fez porque ela também não sabe. Ela sabe o que viu nos livros, ela sabe o que passou horas a fio fechada em casa decorando fórmulas e hipóteses sobre o inicio do universo. Ela despreza os padres da igreja porque eles dizem saber o que a ciência não encontra evidências. Mal sabe ela que assim como o padre lá da igreja eles estão fazendo as perguntas erradas. Não é sobre como o universo surgiu, ou quem é seu criador. Não adianta nada questionar tudo isso quando o conceito de planeta está deturpado. Não sabemos o que é a criação, da qual fazemos parte. Não conseguimos desenvolver pensamentos simples como de que somos, tanto o porteiro do apartamento da esquina, a mulher que lava os banheiros lá de casa, o deputado, o "bandido", o operário, o arquiteto, o astronauta, e eu, da classe média burguesa, somos todos partes de uma única coisa. Não há um "eu" sem vocês, sem nós. Não reconhecemos nem que somos uma pequena parte de uma coisa muito, muito, muito maior. E vivemos reforçando nosso egoísmo de não compreender nem à nós mesmos, que somos uma pequena parte do que chamam por ai de criação, e nosso querer conhecer a causa, o criador, a explosão lá no planeta a 9.912.919.3812,23 anos luz de nós. Olhamos pra fora, olhamos pro outro, e não olhamos pra nós mesmos. Se olhássemos talvez veríamos que somos um só. Esqueceríamos nossas ideias errôneas de superioridade, e de inferioridade.

Mas dizem por ai que é tudo loucura minha. Que preciso de terapeuta, psicólogo, psiquiatra, neurologista e um exorcista.

Só sei que se for pra assumir minha superioridade, pra olhar o meu amigo negro com olhos de desconfiança, fazer caridade pra massagear meu ego, e não enxergar aquelas pessoas ali jogadas na sarjeta com suas elegantes e ofensivas barbas sujas (mas que quando questionadas sobre aquelas simples perguntas que os intelectuais dos diplomas disfarçam e não respondem, surpreendem com palavras simples mas de sabedoria infinita), eu prefiro sinceramente assumir então minha loucura. Assumo então que sou louca, que sou branca, classe média e louca. Assumo que todos meus argumentos são totais devaneios, e que se eu fosse realmente alguém normal deveria estar ali levantando meu diploma de advogada, ou médica, quem sabe... Assumo então, no lugar de minha superioridade considerada "normal", minha inferioridade de insana e doente. Melhor doente e inferior do que normal, padrão (zona sul de vida), num mundo onde ser desumano é agir com humanidade. Prefiro olhar pra fora da minha janelinha de ouro e continuar a enxergar meus devaneios, minhas alucinações, onde existem pessoas lá fora iguais à mim num tronco disfarçado de remuneração assalariada.

Pamella R
Enviado por Pamella R em 18/01/2014
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