Uma terra, um tempo, um mundo estranhos?
Fechei o livro de história, o livro de arqueologia, o livro de mitologia e olhei ao redor, e só uma coisa era totalmente certa: não sou um celta. Não nasci de uma linhagem familiar puramente vinda das terras célticas (embora possa clamar um pouco de minha origem naquela região), não vivo nas ventosas e nevoentas ilhas britânicas, não vivo nas verdes colinas da Irlanda, não vivo em uma era antiga, onde os antigos Deuses eram cultuados e o perigo da batalha sempre estava próximo, seja por invasores estrangeiros, seja por tribos rivais. É, definitivamente não sou um celta. Mas isso me impede de aprender e praticar sua espiritualidade, seguir os seus caminhos de honra, entender o seu ensinamento em relação à Terra, de estudar os ensinamentos dos Druidas?
Vivo no Brasil. Tirando o nome, de origem tão controversa, mas comumente associado à língua dos celtas por estudiosos, esse país tem realmente pouco em comum com as antigas terras onde nossa fé nasceu. É uma terra verde e tropical, de clima quente e variado. Mas a espiritualidade dos celtas e dos Druidas, possuía muito do seu enfoque nos ciclos da Terra e na relação do homem (Tribo) com ela; “Estudo da Natureza” e “Filosofia Ética”, essas eram as especializações dos Druidas de acordo com o grego Estrabão. E os Druidas eram os sábios do povo celta, os seus professores, instrutores e guias. Nossa terra possui uma natureza luxuriante, que segue os mesmos ciclos que a natureza em todo o mundo; apenas a forma de percepção deles é diferente. Os ciclos da Terra ainda guiam nossas vidas, tanto aqui como lá, e se aprendermos (e permitirmos) como eles podem nos guiar, ainda poderemos nos ligar à espiritualidade antiga, não só dos celtas, mas também de todas as culturas nativas. O Druidismo nos ensina a reconhecer o Sagrado na natureza, na luz do Sol, na chuva que refresca, no vento que sopra, nas árvores que nos protegem, nos animais que nos cercam. Em outra terra ou não, o Druidismo é uma lição válida.
Vivo no Brasil e sou filho de seu povo. Povo conhecido por sua grande mistura de povos. E filho deste povo e desta mistura eu sou. A maior parte dos meus Ancestrais diretos veio da África, o orgulhoso continente que é a Mãe da Humanidade; e lá não houve Druidismo. Outros Ancestrais diretos vieram da Península Ibérica, a região que é a Mãe do Brasil, origem de nossa língua e maior parte de nossa cultura; e lá o Druidismo conviveu com muitas outras espiritualidades, e deixou muito poucos registros. Alguns outros Ancestrais vieram das Ilhas nevoentas onde habitavam os celtas; e mesmo esses já eram cristãos há mais de um milênio, e tiveram contato com vários outros povos dentro das próprias ilhas. Mesmo que não houvessem esses Ancestrais, ainda assim não seria errado praticar o Druidismo; pois ele ensina o valor dos Ancestrais, da Terra (os que viveram aqui antes de nós), do Sangue (os que nos deram a vida) e os do Espírito (os que nos legam a sua tradição, os antigos celtas e Druidas). Uma pessoa que se sinta atraída pela filosofia druídica, pela sua forma de pensar, pela arte céltica, pela sua história, que ouça o seu mito e sinta em seu coração a verdade sendo dita nas lendas dos Deuses, essa pessoa pode clamar o Druidismo para si, e reconhecer os celtas e Druidas como Ancestrais, se não de Sangue, de Espírito. Estudar e conhecer é importante para reconhecer essa ligação, mas os Ancestrais de Espírito são apenas uma parte de nossa herança; todos os outros Ancestrais também são parte importante de nossa existência, pois compõem o sangue que corre em nossas veias e os ossos que nos mantém de pé.
Vivo no século XXI da Era Cristã. Uma era tão diferente da era dos Druidas originais que ela seria impensável para eles, tanto em suas qualidades quanto em seus defeitos. Não podemos negar que somos filhos de nossos tempos, e temos facilidades (e mesmo algumas “dependências”) que não haviam nos tempos antigos. Não digo que devemos abdicar delas, longe disso. Não só o mundo antigo ensina lições válidas, e o mundo moderno nos trouxe uma maior justiça social, uma expansão do conhecimento científico, um acesso simples aos estudos, e muitos benefícios mais em questões de saúde, segurança e outras áreas. Não devemos negar nossos tempos, assim como não devemos negar nossos Ancestrais e nossa Terra. Aprenda com a nossa era. E então podemos aplicar o Druidismo nas áreas em que ela é deficiente: o pensamento imediatista, a vida dessacralizada, o pensamento covarde da zona de conforto, o consumo desenfreado, a desconhecimento dos ciclos da Terra, a falta de noção de comunidade. Temos tanto a ensinar quanto a aprender, e sabemos que o mundo moderno precisa aprender com nossa filosofia; mas nem por isso ele deixará de ser o mundo moderno, pois o tempo só caminha para frente. Ensinar que tudo tem o seu momento, a sacralidade da vida, a mentalidade heroica de se levantar e fazer a diferença, a necessidade de respeitar os limites da Terra, de parar e reconhecer a beleza da natureza e seus ciclos, de agir como comunidade, como Tribo, mais do que apenas pensando em nossos sonhos individuais, essas são lições que ajudarão o mundo moderno a caminhar em frente, mais do que nos levar de volta ao mundo do passado.
Não negue quem é. Conheça a si mesmo, pois só assim você pode fazer com que o Druidismo tenha uma relevância no nosso mundo atual. Não viva sua vida buscando viver em um lugar diferente, ser uma pessoa diferente, ou agir como em uma época diferente. Viva o Druidismo no lugar onde estiver, pois ele pode ser praticado em qualquer terra; não negue seus Ancestrais, não importa quem eles sejam, pois os Ancestrais de Espírito (os Druidas e o povo celta) nos ensinaram que eles são importantes e devemos a eles nossas existências; pratique o Druidismo em nossa época, em nossos dias, e nunca esqueça que jamais voltaremos ao passado distante, pois é essa época, esse tempo, que mais precisa de nossos valores e que mais tem a aprender conosco.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com